A espora de prata

- “Este caso se deu, começou Alexandre, um dia em que fui visitar meu sogro, na fazenda dele, léguas distantes da nossa. Já contei ao senhor que os arreios do meu cavalo eram de prata.
- De ouro, gritou Cesária.
- Estou falando nos de prata, Cesária, respondeu Alexandre. Havia os de ouro, é certo, mas estes só serviam nas festas. Ordinariamente eu montava numa sela com embutidos de prata. As esporas, as argolas da cabeçada e as fivelas dos loros eram também de prata. E os estritos, aerados, faiscavam como espelhos. Pois sim senhores, eu tinha ido visitar meu sogro, o que fazia uma ou duas vezes por mês. Almocei com ele e passamos o dia conversando em política e negócios. Foi aí que ficou resolvida a minha primeira viagem ao sul, onde me tornei conhecido e ganhei dinheiro. Acho que me referi a uma delas. Adquiri um papagaio...
- Por quinhentos e tantos mil-réis, disse mestre Gaudêncio. Já sabemos. Um papagaio que morreu de fome.
- Isso mesmo, seu Gaudêncio, prosseguiu o narrador, o senhor tem boa memória. Muito bem. Passei o dia com meu sogro, à tarde montamos a cavalo, percorremos a vazante, as plantações e os currais. Justei e comprei cem bois de era, despedi-me do velho e tomei o caminho de casa. Ia principiando a escurecer, mas não escureceu. Enquanto o sol de punha, a lua cheia aparecia, uma lua enorme e vermelha, de cara ruim, dessas que anunciam infelicidade. Um cachorro na beira do caminho uivou desesperado, o focinho para cima, farejando miséria. - "cala a boca, diabo." Bati nele com o bico da bota, esporeei o cavalo e tudo ficou em silêncio. Depois de um golpe curto, ouvi de novo os uivos do animal, uns uivos compridos e agoureiros. Não sou homem que trema à toa, mas aquilo me arrepiou e deu-me um babecum forte no coração. Havia no campo uma tristeza de morte. A lua crescia muito limpa, tinha lambido todas as nuvens, estava com intenção de ocupar metade do céu. E cá embaixo era um sossego que a gemedeira do cachorro tornava medonho. Benzi-me e rezei baixinho uma oração de sustância e disse comigo: - "Está-se preparando uma desgraça neste mundo, minha Nossa Senhora." Afastei-me dali, os gritos de agouro sumiram-se, avizinhei-me da casa pensando em desastres e olhando aquela claridade que tingia os xiquexiques e os mandacarus. De repente, quando mal me precatava, senti uma pancada no pé direito. Puxei a rédea, parei, ouvi um barulho de guizo, virei-me para saber de que se tratava e avistei uma cascavel assanhada, enorme, com dois metros de comprimento.
- Dois metros, seu Alexandre? Inquiriu o cego preto Firmino. Talvez seja muito.
- Espere, seu Firmino, bradou Alexandre zangado. Quem viu a cobra foi o senhor ou fui eu?
- Foi o senhor, confessou o negro.
- Então escute. O senhor, que não vê, quer enxergar mais que os que têm vista. Assim é difícil a gente se entender, seu Firmino. Ouça calado, pelo amor de Deus. Se achar falha na história, fale depois e me xingue de potoqueiro.
- Perdoe, rosnou o preto. É que eu gosto de saber as coisas por miúdo.
- Saberá, seu Firmino, berrou Alexandre. Quem disse que o senhor não saberá? Saberá. Mas não me interrompa, com os diabos. Ora muito bem. A cascavel mexia-se com raiva chocalhando e preparando-se para armar novo bote. Tinha dado o primeiro, de que falei, uma pancada aqui no pé direito. - "Os dentes não me alcançaram porque estou bem calçado", foi o que presumi. Saltei no chão e levantei o chicote, pois ali perto não havia pau nem pedra. A miserável enrolava-se, os olhos redondos pregados em mim e a língua fora da boca. Zás! Desmanchei-lhe a rodilha com uma chicotada. Tentou endireitar-se, estraguei-lhe os planos e com o chicote fui batendo, batendo, até que, desanimada, ela meteu o rabo entre as pernas e botou-se devagarinho para um monte de garranchos de coivara.
- Como é isso, seu Alexandre? Perguntou o cego. A cascavel meteu o rabo entre as pernas? Cascavel não tem pernas.
- Está claro que não tem, respondeu Alexandre. Quando a gente diz que uma criatura mete o rabo entre as pernas, quer dizer que ela se encolhe, capionga, percebe? Foi o que se deu. Não é preciso um bicho ter penas para meter o rabo entre as pernas. Seu Firmino é pessoa de entendimento curto e não compreende isto. A cascavel, que não tinha pernas, meteu o rabo entre as pernas e esgueirou-se para os garranchos e folhas secas que havia junto da estrada. Corri atrás dela e obriguei-a a voltar. Amiudei os golpes, a desgraçada bambeou e nem pediu fogo para o cachimbo. Machuquei-lhe a cabeça com o salto da bota. Estrebuchou, fez o que pôde para arrumar-se em novelo, depois se aquietou e ficou estirada na poeira. Baixei-me e medi o corpo mole: nove palmos e meio espichados. Isto é com o senhor, seu Firmino. Nove palmos e meio, entendeu? Mais de dois metros, pensou eu. Que diz?
- Deve ser isso mesmo, resmungou o negro. Não sei não. Estou escutando. Sempre me dou mal quando faço perguntas. O senhor é que sabe.
- Perfeitamente, concluiu Alexandre. A cobra tinha mais de dois metros. Tirei a vagem da cauda e contei nela dezessete anéis, o que significa dezessete anos, como ninguém ignora. Vejam vossemecês: dezessete anos. Era uma cobra muito velha, muito prática. Se eu não estivesse com os pés bem protegidos, não teria escapado, os senhores não ouviriam este caso. Ó Cesária, veja se arranja dois dedos de cachimbo lá dentro. Eu preciso molhar a palavra. E os nossos amigos estão com o ouvido seco. Vá buscar o cachimbo, Cesária. E procure o chocalho da cascavel, que você guardou.
Cesária levantou0se da esteira e desapareceu. Alexandre enxugou na manga da camisa o rosto suado. Mestre Gaudêncio, curandeiro, seu Libório cantador e Das Dores comentaram baixinho o tamanho e a idade da cobra. Passados alguns minutos, Cesária voltou com uma garrafa e uma xícara.
- Preparei o cachimbo. Aguardente não falta, e as abelhas trabalham de graça. Mas o chocalho sumiu-se. Estava no jirau, misturado com balaios e combucos: provave.”
Graciliano Ramos

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