O rei do rio de ouro

"Como o senhor vento sudoeste se meteu no sistema de lavoura dos irmãos negros

“Numa remota e montanhosa região da Estíria, houve noutros tempos um vale da maior e mais surpreendente fertilidade. Era completamente rodeado de montanhas escarpadas e rochosas cujos picos muito altos estavam sempre cobertos de neve e de onde corriam em constantes cataratas inúmeras torrentes. Uma destas montanhas era tão alta que, quando o sol se punha para tudo o mais - e já em volta dominava a escuridão - ainda os seus raios brilhavam intensamente sobre o rio que se despenhava do seu cume, dando-lhe o aspecto de um chuveiro de ouro. Por esse motivo o povo daqueles sítios chamava-lhe o Rio de Ouro.

Era estranho que nenhuma daquelas torrentes ia cair no vale, mas todas desciam pelos outros lados dos montes e serpenteavam através de vastas planícies e cidades populosas. As nuvens eram impelidas tão constantemente para os picos cobertos de neve e ficavam tanto tempo por sobre aquela concavidade, que, nas épocas das grandes secas e do calor, quando os campos próximos estavam queimados, ainda chovia no valezinho; as suas colheitas eram tão abundantes, e o seu feno tão alto, e as suas maçãs tão vermelhas, e as suas uvas tão roxas, e o seu vinho tão rico, e o seu mel tão doce, que era uma maravilha para quem os possuía e todos o conheciam pelo nome de Vale do Tesouro.

Todo este vale pertencia a três irmãos chamados Schwartz, Hans e Gluck. Schwartz e Hans os dois irmãos mais velhos, eram muito feios, de sobrancelhas salientes, olhos pequenos e baços, sempre semicerrados para que ninguém pudesse ver o que eles pensavam e eles vissem o que pensavam as outras pessoas.

Viviam da lavoura do Vale do Tesouro e eram muito bons lavradores. Matavam tudo o que não compensasse o que comia. Matavam os melros, porque bicavam a fruta; matavam os ouriços para não sugarem as vacas; envenenavam os grilos para não comerem as migalhas na cozinha e matavam as cigarras que costumavam cantar todo o Verão em cima das limas. Faziam trabalhar os criados sem lhes pagar, até que eles se recusavam a isso; então questionavam com eles e mandavam-nos embora sem lhes dar absolutamente nada.

Seria muito estranho se, com uma propriedade daquelas e semelhante sistema de se governarem, não enriquecessem. E enriqueceram.

Em geral arranjavam as coisas para conservar o trigo em seu poder até que ele encarecia e então vendiam-no pelo dobro do que ele valia; tinham montões de ouro no chão da sua casa, mas não constava que tivessem alguma vez dado dinheiro ou alguma côdea, de esmola a alguém. Nunca iam à missa, resmungavam sempre que pagavam as décimas e, numa palavra, eram tão cruéis e tinham tão mau génio que as pessoas que precisavam lidar com eles os tinham alcunhado de Irmãos Negros.

Gluck, o mais novo, era absolutamente diferente dos irmãos, tanto no feitio como no aspecto. Não tinha mais de doze anos, era louro, de olhos azuis, e benevolente para as pessoas e para os animais. Claro que não se dava muito bem com os irmãos, ou, por outra, os irmãos não se davam muito bem com ele. Em geral incumbiam-no do honroso trabalho de virar o espeto, quando havia alguma coisa para assar, o que não era frequente, porque, para fazermos justiça aos irmãos, devemos dizer que eles eram pouco mais generosos consigo próprios do que com as outras pessoas. De outras vezes encarregavam-no de limpar os sapatos, o chão e a louça, apanhando de quando em quando os restos que ficavam nas travessas, como gratificação, e muita pancada para ser educado. As coisas continuaram assim durante bastante tempo, até que, por fim, veio um Verão muito húmido e tudo se transformou nos arredores do vale.

Mal tinham acabado de colher o feno quando as medas foram levadas para o mar por uma inundação; a saraiva despedaçou as vinhas; a geada negra queimou o trigo e só no Vale do Tesouro tudo continuou bem como de costume.”
Charles Dickens

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