Sagarana

“O grande êxito de Sagarana, do dr. J. Guimarães Rosa, não deixa de se prender às relações do público ledor com o problema do regionalismo e do nacionalismo literário. Há cerca de trinta anos, quando a literatura regionalista veio para a ribalta, gloriosa, avassaladora, passávamos um momento de extremo federalismo. Na intelligentzia, portanto, o patriotismo se afirmou como reação de unidade nacional. A Pátria, com pê sempre maiúsculo, latejou descompassadamente, e os escritores regionais eram procurados como afirmação nativista. Foi o tempo em que todo jovem promotor ou delegado, despachado para as cidadezinhas do interior, voltava com um volume de contos ou uma novela sertaneja, quase sempre lembrança de cenas, fatos e pessoas cujo pitoresco lhes assanhava a sensibilidade litorânea de nascimento ou educação.

A reviravolta econômica nos grandes Estados, subseqüente à crise de 1929, alterou os termos de equação política, e a descentralização federalista, depois de alguns protestos nem sempre platônicos, foi cedendo passo à nova fase centralizadora, exigida quase pelo desenvolvimento da indústria. Processo cuja aberração foi o Estado Novo, assim como a constituição castilhista tinha sido a aberração do processo anterior.

Para compensar - como às vezes acontece -, a intelligentzia se virou para o bairrismo. Antes, quando a palavra de ordem política e o sentimento geral eram provincianos, foi chique ser nacionalista, e o porta-voz mais característico da tendência foi Olavo Bilac. Agora, que as forças unitárias predominam e já se vai generalizando um certo sentimento de todo - deste todo de repente vivo e existente por meio do rádio e do aeroplano -, agora a moda é ser bairrista, e o porta-voz mais autorizado da tendência é o sr. Gilberto Freyre, pai da voga atual da palavra "província". Todos falam na sua província, nas suas tradições etc etc, embora a maioria prefira fazer como seu Rui da canção, isto é, ela lá e eu aqui. Quando chega ao Rio, o jovem intelectual não mais se esforça por mudar a pronúncia e parecer familiarizado com a cidade; capricha o sotaque e escreve imediatamente sobre a negra velha que (diz ele) o criou, falando dos avós da pequena terra em ue nasceu etc. O maior elogio do dia é "sabor da terra", traduzindo do " francês, já se vê, e a maior ofensa dizer a um escritor que ele não tem raízes.

Natural, em meio semelhante, o alvoroço causado pelo sr. Guimarães Rosa, cujo livro vem cheio de "terra", fazendo arregalar os olhos aos intelectuais que não tiveram a sorte de morar ou nascer no interior (digo, na "província" ) ou aos que, tendo nela nascido, nunca souberam do nome da árvore grande do largo da igreja, coisa bem brasileira. Seguro do seu feito, o sr. Guimarães Rosa despeja nomes de tudo - plantas, bichos, passarinhos, lugares, modas - enrolados em locuções e construções de humilhar os citadinos. "Irra, que é talento demais", como o deputado português, mal comparando.

Mas Sagarana não vale apenas na medida em que nos traz um certo sabor regional, mas na medida em que constrói um certo sabor regional, isto é, em que transcende a região. A província do sr. Guimarães Rosa - no caso, Minas - é menos uma região do Brasil do que uma região da arte, com detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes irreal, tamanha é a concentração com que trabalha o autor. Assim, veremos, numa conversa, os interlocutores gastarem meia dúzia de provérbios e outras tantas parábolas como se alguém falasse no mundo deste jeito. Ou, de outra vez, paisagens tão cheias de plantas, flores e passarinhos cujo nome o autor colecionou, que somos mesmo capazes de pensar que na região do sr. Guimarães Rosa o sistema fito-zoológico obedece ao critério da Arca de Noé. Por isso, sustento, e sustentarei mesmo que provem o meu erro, que Sagarana não é um livro regional como os outros, porque não existe região alguma igual à sua, criada livremente pelo autor com elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia belíssima das suas histórias.

Transcendendo o critério regional por meio de uma condensação do material observado (condensação mais forte do que qualquer outra em nossa literatura da "terra"), o sr. Guimarães Rosa como que iluminou, de repente, todo o caminho feito pelos antecessores. Sagarana significa, entre outras coisas, a volta triunfal do regionalismo do Centro. Volta o coroamento. De Bernardo Guimarães a ele, passando por Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Monteiro Lobato, Amadeu de Queirós, Hugo de Carvalho Ramos, assistimos a um longo movimento de tomada de consciência, através da exploração do meio humano e geográfico. É a fase do pitoresco e do narrativo, do regionalismo "entre aspas", se dão licença de citar uma expressão minha em artigo recente. Fase ultrapassada, cujos produtos envelheceram rapidamente, talvez à força de copiados e dessorados pelos minores. Fase, precisamente, em que os escritores trouxeram a região até o leitor, conservando, eles próprios, atitude de sujeito e objeto. O sr. Guimarães Rosa construiu um regionalismo muito mais autêntico e duradouro, porque criou uma experiência total em que o pitoresco e o exótico são animados pela graça de um movimento interior em que se desfazem as relações de sujeito e objeto pára ficar a obra de arte como integração total de experiência.
Sagarana nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura. A língua parece finalmente ter atingido o ideal da expressão literária regionalista. Densa, vigorosa, foi talhada no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das tradições clássicas. Mário de Andrade, se fosse vivo, leria comovido este resultado esplêndido da libertação lingüística, para que ele contribuiu com a libertinagem heróica da sua.

Além das convenções literárias, Sagarana se caracteriza por um soberano desdém das convenções. O sr. Guimarães Rosa - cuja vocação de virtuose é inegável - parece ter querido mostrar a possibilidade de chegar à vitória partindo de uma série de condições que conduzem, geralmente, ao fracasso. Ou melhor: todos os fracassos dos seus predecessores se transformaram, em suas mãos, noutros fatores de vitória.
Para começar, a própria temática, batida e aparentemente esgotada. Em matéria de regionalismo, só aceitamos, de uns vinte anos para cá, o nordestino, transformado, por sua vez e por força do uso, em arrabalde pacífico e já sem surpresas da nossa sensibilidade literária.

Em seguida, o exotismo do léxico, recurso geralmente fácil, abusado pelos escritores gaúchos. Depois, a tendência descritiva, quase de composição escolar, familiar a quem vive em contato com os pequenos jornais do interior e, em literatura, relegada a segundo plano pelas exigências tanto de ação quanto de introspecção do romance moderno. Finalmente, o capricho meio oratório do estilo, que há muito consideramos privativo da subliteratura.
Pois o sr. Guimarães Rosa partiu de todas estas condições, algumas das quais bastaram para fazer naufragar escritores de maior talento, como Monteiro Lobato, ou reduzir ás devidas proporções outros indevidamente valorizados, como o velho Afonso Arinos; não rejeitou nenhuma delas e ~hegou a verdadeiras obras-primas, como são alguns dos contos de Sagarana.

Passando a setor de ordem mais pessoal, talvez possamos dizer que a qualidade básica do autor escapa à crítica, porque só pode ser sugerida por meio de imprecisões como "capacidade de contar", "vigor narrativo" e outras coisas que, tudo exprimindo, nada dizem de positivo. O meu mestre e amigo Giuseppe Ungaretti usaria expressão mais direta, invocando razões de ordem hormonal em calão pitoresco, que eu não me atrevo a trazer para este bem comportado rodapé e que, segundo ele, são as únicas a exprimir a força criadora dos artistas poderosos como é o sr. Guimarães Rosa.

Sagarana se caracteriza pela paixão de contar. O autor chega a condescendência excessiva para com ela, a ponto de quebrar a espinha das suas histórias a fim de dar relevo a narrativas secundárias, terciárias, cujo conjunto resulta mais importante do que a narrativa central. Deixa-se ir ao sabor dos casos, não perdendo vasa para contá-los, acumulando detalhes, minuciando com pachorra, como quem dá a entender que, em arte, o fim não tem a mínima importância, porque o que importa são os meios. Todos os meios e até a ampliação retórica são bons, desde que nos arrebatem da vida, transportando-nos para a vida mais intensa da arte.

Já se vê por aí que o sr. Guimarães Rosa retorna, em grande estilo, à concepção do contista-contador, para o qual a verdade está na narração e na descrição, para o qual as facadas, os casos de amor, os estouros de boiada e os crepúsculos têm valor eterno, acima de quaisquer outros. Por outro lado, como ficou sugerido, a região, deixando de ser, para ele, simples localïzação da história, com funções de pitoresco e anedótico, passa a verdadeira personagem (se assim me posso exprimir), tanta é a persistência e a profundidade com que vém invocados a sua flora, a sua fauna, o seu relevo. Há, mesmo, certos contos, como "São Marcos", em que só ela redime o anedótico e garante o toque literário autêntico. Em "A hora e vez de Augusto Matraga" há uma certa entrada de primavera - verdadeiro Sacre du Printemps - em que a natureza nos comunica sentimento quase inefável, germinal e religioso.

Como padrão de arte objetiva e elaborada, perfeito na suficiência admirável dos meios, gostaria de indicar o conto "Duelo", das maiores peças de atmosfera da nossa atual novelístïca. Uma tensão envolvente, quase alucinante, alimentada sorrateiramente pelo autor com um ominoso vaivém cheio de detalhes geográficos e pequenos casos laterais.

Não é aí, todavia, que devemos procurar a obra-prima do livro mas no citado "Augusto Matraga", onde o autor, deixando de certo modo a objetividade da arte-pela-arte, entra em região quase épica de humanidade e cria um dos grandes tipos da nossa literatura, dentro do conto que será, daqui por diante, cantado entre os dez ou doze mais perfeitos da língua.

Não penso que Sagarana seja um bloco unido, nem que o sr. Guimarães Rosa tenha sabido, sempre, escapar a certo pendor verboso, a certa difusão de escrita e composição. Sei, porém, que, construindo em termos brasileiros certas experiências de uma altura encontrada geralmente apenas nas grandes literaturas estrangeiras, criando uma vivência poderosamente nossa e ao mesmo tempo universal, que valoriza e eleva a nossa arte, escrevendo contos como "Duelo", "Lalino Salãthiel", "O burrinho pedrês" e, sobre todos (muito sobre todos), "Augusto Matraga" - sei que por tudo isso o sr. Guimarães Rosa vai reto para a linha dos nossos grandes escritores.”
Antônio Cândido

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