Adélia

“- A nossa filantropia moderna feita de elegância e exibições é das cousas mais inúteis e contraproducentes que se pode imaginar.Entre todas as pessoas do povo aqui, no Rio de Janeiro, há uma condenação geral para as raparigas que se casam, no dia de santa Isabel, e saem da Casa de Expostos. Isto se dá para uma casa semi-religiosa, que só visa, penso eu, não a felicidade terrena, mas o resgate de almas das garras do demônio. Agora, imagina tu o que de transtorno na vida de tantos entes não vão levar esses "dispensários", essas creches etc. que lhes amparam os primeiros anos de vida e, depois, os abandonam à sua sorte!... Antes a sala do banco da Misericórdia que receita remédios de uma cor única e cuja dieta só varia na inversão dos pratos... É sempre a mesma... Essa caridade é espúria e perversa... Antes deixar essa pobre gente entregue á sua sorte...
- És mau... E impossível que ela não aproveite muitos.
- Alguns, talvez; mas muitos, ela estraga e desvia do seu destino, que talvez fosse alto. Nélson legou Lady Hamilton à Inglaterra; e tu sabes quais foram os começos dela. Chegaria até isso se andasse
em creches, dispensários?
- Não sei; mas não nos devemos guiar por exceções.
- É uma frase; mas vou contar-te uma história bem singela que espero não me interromperás. Prometes?

- Prometo.
- Vou contar.
- Conta lá.

O narrador fez uma pausa e encetou vagarosamente:

- Quando a portuguesa Gertrudes, que "vivia" com o italiano Giuseppe, um amolador ambulante, apresentou Adélia, sua filha, à sublimada competência do doutor

Castrioto, do dispensário, a criança era só um olhar. As pernas lhe eram uns palitos, os braços descamados, esqueléticos, moviam-se nas convulsões de choro sinistramente. Com tais membros e o ventre ressequido e a boca umedecida de uma baba viscosa, a criança parecia premida por todas as forças universais, físicas e espirituais. O seu olhar, entretanto, era calmo. Era azul-turquesa, e doce, e vago. No meio da desgraça do seu corpo, a placidez do seu olhar tinha um tom zombeteiro. O doutor melhorou-a muito; mas, assim mesmo, até à puberdade, foi-lhe o corpo um frangalho e o olhar sempre o mesmo, a ver caravelas ao longe que a viessem buscar para países felizes. Depois de adolescente, porém, no fim das grandes concentrações íntimas, o brilho hialino das pupilas turbava-se, estremecia. Ninguém descobriu-lhe o olhar - quem repara no olhar de uma menina de estalagem? Olham-se-lhe as formas, os quadris e os seios; ela não os tinha opulentos, contudo casou-se. O casamento realizou-se a pé e a garotada assoviou pelo caminho. A noiva com calma estúpida olhou-os. Por quê? Casava-se a pé; era ignóbil. O padrinho não lhe notou modificação sensível. Não chorara, não soluçara, não tremera; unicamente mudou num instante de olhar, que ficou duro e perverso. O primeiro ano de casamento fez-lhe bem.

A intensa vida sexual arredondou-lhe as formas, disfarçou as arestas e as anfractuosidades - emprestou-lhe beleza. Demais, o ócio desse primeiro ano afinou-a, melhorou-a; mas sempre com aquele olhar fora do corpo e das cousas reais e palpáveis. No fim de dois anos de casada, o marido começou a tossir e a escarrar, a escarrar e a tossir. Não trabalhava mais. Adélia rogou, pediu, chorou. Andou por aqui e por ali. Encontrou alguém amável que a convidou:

- Vamos até lá, é perto.
- Ó... Não... "Ele"...
- "Ele"!... Vamos!... "Ele" não sabe; não pode mais. Vamos.

"Foi, e foi muitas vezes; mas sempre sem pesar, sem compreender bem o que fazia, à espera das caravelas sonhadas.

Ia e voltava. O marido tossia e tomava remédios.

- Trouxeste?
- Sim; trouxe.
- Quem te deu?
- O doutor.
- Como ele é bom.

"Aos poucos, infiltravam-se-lhe gostos novos. Um sapato de
abotoar, um chapéu de plumas, uma luva... Morreu o marido. O
enterro foi fácil e o luto ficou-lhe bem. O seu olhar vago, fora dos
homens e das cousas, atravessava o véu negro como um firmamento com uma única estrela no engaste de um céu de borrasca. Um ano depois corria confeitarias, à tarde; mas o seu olhar não pousava nunca nos espelhos e nas armações. Andava longe dela, longe daqueles lugares.

- Toma vermute?
- Sim.
- É melhor coquetel.
- É.
- Antes cerveja.
- Vá cerveja.

Não custou a embriagar-se um dia. Meteram-lhe num carro.Estava que nem uma pasta mole e desconjuntada.

- Que tem você?
- Nada, não vejo.
- Você por que não abre mais os olhos?
- Não posso, não vejo!
- Lá vão os Fenianos... Você não vê?
- Ouço a música.

Teve carros. Freqüentou teatros e bailes duvidosos, mas seu olhar sempre saía deles, procurando coisas longínquas e indefinidas.Recebeu jóias. Olhava-as. Tudo lhe interessou e nada disso amou. Parecia em viagem, a bordo. A mobília e a louça do paquete não lhe desagradavam; queria a riqueza, talvez; mas era só. Nada se acorrentava na sua alma. Correu cidades elegantes e as praias.

- Hoje, ao Leme.
- Sim, ao Leme.

A curva suave da praia e a imensa tristeza do oceano prendiam-na. Defronte do mar, animava-se; dizia cousas altas que passavam pelas cabeças das companheiras, cheias de mistério, como o vôo longo de patos selvagens, à hora crepuscular.
Veio um ano que se examinou. Estava quase magra, quase esquálida. Foi-se fanando dai por diante. Diminuíram-se-lhe as jóias e os vestidos. Morreu aos trinta e poucos anos como a criança que se fora: um frangalho de corpo e um olhar vago e doce, fora dela e das cousas. Que é que adiantou o dispensário?"
Calou-se o que narrava, e o outro só soube dizer:

- Vou-me embora... Até amanhã.”
Lima Barreto

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