A Mulher dos Olhos Azuis

I
O comissário adjunto da polícia, Zossime Guillovitch Podchiblo, pesado e melancólico ucraniano, estava sentado à secretária, torcia os bigodes e girava os olhos irritados mirando o pátio do comissariado pela janela. O gabinete era escuro, quente e silencioso; só o pêndulo de um grande relógio de parede contava os minutos com pancadas desagradáveis e monótonas. No pátio, ao contrário, tudo era sedutor, claro... Três bétulas mergulhavam-no em sombra espessa e, num monte de feno recentemente trazido para ali para os cavalos dos bombeiros, dormia, estendido à vontade, o sargento Konkharine, que acabara de ser rendido da guarda. Zossime observava-o e aquilo tornava-o furioso. O subordinado dorme e ele, o seu infeliz chefe, deve vegetar neste buraco e respirar as emanações húmidas dos seus muros de pedra! Podchiblo imaginava o prazer que sentiria também, repousando à sombra, deitado no feno perfumado, se tivesse tempo e se a sua posição administrativa lho permitisse; depois espreguiçou-se, bocejou e ficou ainda mais desesperado. Sentiu o incoercível desejo de acordar Konkharine.
- Eh, tu!... Eh... Animal! Konkharine! - chamou ele com toda a força.
A porta abriu-se e alguém entrou no gabinete. Podchiblo olhava pela janela e não se virou, não teve o mais pequeno desejo de saber quem entrava, quem estava por trás dele no limiar da porta e fazia gemer o soalho sob o seu peso.

Konkharine não deu pelo chamamento do seu superior. Com as mãos cruzadas debaixo da cabeça, a barba virada para o céu, dormia, e a Zossime pareceu-lhe ouvir o forte ressonar do seu subordinado, um ressonar irónico, saboroso, feito para excitar ainda mais o seu desejo de repouso e a raiva de não se poder entregar a ele. Podchiblo teve vontade de descer para dar um bom pontapé na barriga inchada do homem, de o apanhar pela barba e arrastá-lo para o sol.

- Eh... ainda na sorna! Estás a ouvir-me?
- Senhor comissário, quem está de serviço sou eu! Proferiu alguém atrás dele numa voz obsequiosa e açucarada.
Podchiblo voltou-se, mediu com um olhar mau o sargento que remexia uns olhos grandes e embrutecidos e estava pronto a lançar-se instantaneamente aonde o mandassem.
- Chamei-te?
- Não, senhor comissário.
- Fiz-te alguma pergunta? - disse Podchiblo aumentando a voz e agitando-se ligeiramente na cadeira.
- Não, senhor comissário.
- Então, vai para o Diabo antes que te atire com qualquer coisa às ventas!
E ele começava já a remexer febrilmente na mesa com a mão esquerda para encontrar um projéctil qualquer enquanto a direita se agarrava à cadeira; mas o sub-oficial, lesto e rápido, passou para o outro lado da porta e desapareceu. Este desaparecimento parecia insuficientemente respeitoso ao comissário auxiliar da polícia; e veio-lhe a vontade de descarregar de qualquer forma toda a cólera que sentia subir em si contrastando com o ar morno da sala, com o serviço, com Konkharine adormecido, com a próxima temporada da feira e com outras maçadas que, não se sabe porquê, vinham naquele dia apresentar-se espontaneamente ao seu espírito, contra a sua vontade.

- Eh lá! Vem cá... - gritou na direcção da porta.
O sargento de serviço entrou e abrigou-se sob a soleira; a sua cara exprimia horror e expectativa.
- Cara de parvo - insultou-o Podchiblo com um ar carrancudo. - Vai ao pátio, acorda Konkharine e diz-lhe, a esse burro, que não torne a ressonar ali. Um escândalo!... Vai... depressa...
- Às suas ordens! E, senhor comissário, está ali uma senhora que o queria ver...
- Quem?
- Uma senhora...
- Como?
- Uma grande...
- Idiota! Que é que ela quer?
- Vê-lo...
- Pergunta-lhe para quê... anda!
- Perguntei-lhe... não me respondeu... "Quero ver o senhor comissário" disse ela.
- Ah, cambada!... Dize-lhe que entre!... É nova?
- Sim, senhor comissário.
- Bom, que entre!... Mexe-te! - ordenou Podchiblo com uma voz já mais suave; ajeitou o fato e fez barulho com os papéis na mesa dando à sua fisionomia aborrecida o aspecto vigoroso que convém à autoridade administrativa.

Atrás dele ouviu-se um roçar de vestido.
- Que deseja? - perguntou Podchiblo colocado a três quartos depois de ter medido a visitante com um ar crítico. Esta inclinou-se e aproximou-se lentamente da mesa, deitando um olhar encantador e furtivo ao polícia com os seus olhos azuis e graves. Estava vestida simples e pobremente, como as mulheres da pequena burguesia: com um lenço na cabeça, trazia um mantelete de pele cinzenta muito usada, cujos cantos ela amarfanhava entre os dedos morenos das suas mãos pequenas e bonitas. Era grande, forte, com o busto desenvolvido, e o rosto comprido e trigueiro; ela tinha em si qualquer coisa de particularmente severo e reflectido que não era feminino. Podia-se-lhe dar uns vinte sete anos. Avançava com um ar pensativo, com lentidão, como se perguntasse a ela mesma: "Não deveria ir-me embora?"
"Diabo! que granadeiro!" pensou Podchiblo imediatamente após a pergunta feita. "Isto vai dar uma queixa"...

- Podia dizer-me..., - começou ela com uma voz profunda de contralto, depois interrompeu-se hesitante, parando os seus olhos azuis na cara barbada do oficial da polícia.
- Sente-se, se faz favor... Que deseja saber? - perguntou Podchiblo com um tom oficial, continuando a pensar para consigo: "Uma boa mulher! Eh! Eh!"

- É por causa dos livretes...
- De habitação?
- Não, não é desses...
- Então quais?
- Aqueles... aqueles com que... as mulheres vão...
- Que quer dizer?... De que mulheres se trata? - Perguntou Zossime levantando as sobrancelhas com um sorriso atrevido.
- Toda a espécie de mulheres que... saem à noite...
- Ai, ai, ai! As prostitutas? - fez Zossime, explicando-se amavelmente.
- Sim! É isso.

E, suspirando profundamente, ela sorriu por sua vez, mostrando-se mais à vontade depois de ouvir a palavra.
- Ah! Ah! Então? Sim, sim! E depois? - começou a interrogar Zossime, pressentindo qualquer coisa interessante e complicada.
- E depois, foi por causa desses cartões que eu cá vim... - pronunciou a mulher deixando-se cair para trás na sua cadeira, suspirando e sacudindo estranhamente a cabeça como se tivesse recebido uma pancada.
- Então... vai abrir um pequeno estabelecimento ? É isso...
- Não, é para mim...
E a mulher baixou muito a cabeça.

- Ah! Ah! E então onde está o seu antigo livrete?... - perguntou Podchiblo e, puxando a sua cadeira para mais perto da visitante, deitou-lhe a mão à cintura, atirando uma olhadela para a porta.
- Qual? Eu não tinha... - respondeu ela, olhando para ele, mas não fez um movimento para evitar a sua mão.
- Então você exercia secretamente a sua indústria? - Você não estava matriculada? Isso acontece. E você quer pôr-se em dia? Está bem... Há menos riscos - encorajou-a Zossime, afoitando-se nos seus gestos.
- Mas é a primeira vez que... - precisou ela, baixando os olhos com um ar incomodado.

- Mas como, a primeira vez? Não compreendo - retorquiu Podchiblo, encolhendo os ombros.

- Eu quero só... É a primeira vez. Eu vim para a feira - explicou a senhora com uma voz estrangulada, sem levantar os olhos.
- Ah, é isso! - Zossime retirou a mão, afastou-se, e, um bocado embaraçado, recostou-se na sua cadeira.

Ficaram um instante silenciosos.
- É então isso!... Sim... você quer... Mas é uma profissão desagradável, vejamos. Difícil... Quero dizer, naturalmente... Mas mesmo assim... Estranho! Não compreendo, confesso... Como é que pode tomar essa decisão. Se é efectivamente verdade...

Como polícia experimentado, ele via bem, que efectivamente, era verdade: ela era fresca e correcta de mais para pertencer às mulheres de certa profissão... Não tinha nenhum dos sintomas de venabilidade que marcam infalivelmente o físico e os gestos duma mulher, mesmo depois de uma curta prática.

- Juro-lhe que é verdade! - Ela inclinou-se subitamente para ele, com confiança. - Eu ia exercer esta suja profissão, e ia pôr-me a mentir? Então porquê? É preciso levar as coisas simplesmente. Está a ver, eu sou viuva. Perdi o meu marido: ele era piloto e desapareceu em Abril durante o degelo. Tenho dois filhos, um rapaz de nove anos, uma rapariga de sete. Não tenho rendimentos. Pais também não. Ele casou comigo órfã. E os dele, os pais, estão longe. E, aliás, não gostavam de mim... Como são abastados, eu sou para eles uma espécie de mendiga. Não tenho porta onde bater. Podia trabalhar, é certo. Preciso de muito dinheiro, e nunca ganharia o suficiente. O meu filho está no liceu. Naturalmente, eu podia fazer uma tentativa para uma bolsa, mas onde é que isso me levava, a mim, uma pobre mulher? E o meu filho é um homenzinho... sabe, uma boa cabeça! Era pena cortar-lhe a carreira... O mesmo com a rapariga... Também é preciso dar-lhe qualquer coisa. E um trabalho para isto, um trabalho honesto... encontra-se pouco. E quanto ganharia? E depois, pergunto-lhe eu, que trabalho? Cozinheira, talvez... sim, claro... cinco rublos por mês... não chega! Não chega para nada! Enquanto que com esta coisa... Com sorte... pode-se ganhar duma vez para comer durante um ano. Durante a feira, o ano passado, uma mulher que eu conheço ganhou quatrocentos rublos! Agora, com esse dinheiro, casou-se com um guarda florestal; é uma senhora, não precisa de se maçar mais. Vive... Mas, há a vergonha, dirá o senhor, claro, é desonroso... Mas é só... E se pensar... É o destino... É sempre o destino. Isto veio-me assim, ao espírito; então, não é verdade, é preciso fazê-lo: é um sinal do destino... Se der resultado, muito bem... se não der, e que eu tenha apenas o sofrimento e a vergonha... será também o destino... Sim...

Podchiblo ouvia-a e percebia metade, porque toda a sua fisionomia falava. A princípio, era uma expressão de terror, mas, depois, tinha-se tornado simples, seca e resoluta.

Ele sentia-se pouco à vontade, com uma ponta de inquietação.
"Caia um idiota entre as mãos desta vaca e ela arrancar-lhe-á a pele num segundo e não lhe deixa senão os ossos" pensou e, quando a sua visitante acabou, disse secamente:

- Não posso fazer nada por si. Dirija-se ao chefe da polícia. Isso é com a direcção da polícia e com a inspecção sanitária. Eu não posso nada...
Desejava vê-la partir o mais cedo possível. Ela levantou-se imediatamente, inclinou-se e dirigiu-se lentamente para a porta. Podchiblo, com os dentes cerrados, piscando os olhos, seguia-a com os olhos, e calava-se para não lhe cuspir nas costas...

- Então, eu devo ir ver o chefe da polícia, diz o senhor? - perguntou-lhe ainda, voltando-se na porta... Os seus olhos azuis diziam a sua decisão inabalável. Mas uma ruga profunda vincava o seu rosto.
- Sim, sim! - respondeu precipitadamente Podchiblo.
- Até à vista! Muito obrigada! - E ela saiu.

Podchiblo encostou-se com os cotovelos sobre a mesa e ficou assim uma dezena de minutos, assobiando entre os dentes.
- Que estupor, hein? - Pronunciou em voz alta, sem levantar a cabeça. - Ainda por cima com os miúdos! O que é que os miúdos tinham a ver com isto? Hein! Que carcassa!

Fez-se, de novo, um enorme silêncio...

- Mas há a vida também..., se tudo aquilo é verdade. A vida torce um homem como uma corda, pode dizer-se... Sim... A vida não é nada macia...
Depois de novo silêncio, para recapitular todo o trabalho do seu pensamento, ele deu um pesado suspiro, cuspiu com um ar definitivo e exclamou energicamente:

- Porcaria!
- Que deseja? - disse o sargento de serviço que reapareceu à porta.
- Hein?
- O senhor comissário deseja qualquer coisa?
- Põe-te a mexer!
- Às suas ordens!
- Espécie de burro! - resmungou Podchiblo. E olhou pela janela.
Konkharine continuava a dormir no feno... Manifestamente, o sargento de serviço tinha-se esquecido de o acordar...
Mas Podchiblo tinha esquecido a sua cólera e o espectáculo do soldado que se refastelava sem cerimónia não o aborreceu de maneira nenhuma. Sentia-se obscuramente assustado. Via no espaço os olhos azuis, tranquilos, que o fitavam resolutamente, no rosto. Sob este olhar obstinado sentia um peso no coração, uma espécie de mal-estar.

Olhou para o relógio, reajustou o cinturão e saiu do gabinete, resmungando:
- Tornaremo-nos a ver, não há dúvida... É mesmo certo!

II
Efectivamente, tornaram a encontrar-se.
Uma noite em que rondava de serviço, Podchiblo viu-a a cinco passos de distância. Dirigia-se para o jardim público com o lento andar coleante, os olhos azuis obstinadamente fitos em frente, ao longe; em toda a sua figura, harmoniosa e alta, no movimento do busto e das ancas, no olhar luminoso e grave, havia qualquer coisa que se desencontrava; o vinco de fatalidade extrema, de renúncia, que lhe marcava a face, estava muito mais nítido que no primeiro encontro e estragava, endurecendo-o, aquele belo rosto.
Podchiblo cofiou o bigode, acariciou uma ideia travessa que acabava de nascer no seu espírito e decidiu não perder a mulher de vista.

- Espera um bocadinho, minha coruja! - Tal foi a exclamação prometedora que lhe dirigiu mentalmente.
Cinco minutos mais tarde estava já sentado ao lado dela num dos bancos do jardim.

- Não se lembra de mim? - perguntou ele sorrindo.
Ela olhou para ele e mediu-o calmamente.
- Sim, lembro-me. Boa tarde, - disse ela em voz baixa, abafada, mas não lhe estendeu a mão.
- Então, como vai isso? Sempre conseguiu o livrete?
- Está aqui! E começou imediatamente a procurar na algibeira do vestido, sem abandonar o seu ar dócil.

O polícia ficou um bocado desconcertado.
- Mas não, não vale a pena, não o mostre que eu acredito. E mesmo, eu não tenho o direito... Quero dizer... Diga-me antes se se está a sair bem? - perguntou ele. E pensou no mesmo instante. "Preciso de sabê-lo! E de que maneira! E além disso... vou-me pôr com delicadezas? Então, Podchiblo, vamos a isto!"

No entanto, se bem que assim pensasse, não se decidia a entrar a fundo. Havia nela qualquer coisa que não permitia aproximar-se-lhe muito de perto, imediatamente.

- Êxito? Lá vai, com a graça de... - ela parou bruscamente, abandonou a frase e corou fortemente.

- Está muito bem. Parabéns... É duro quando não se está habituada? Hein?
De repente ela teve um movimento de recuo com todo o tronco, as faces empalideceram, a fisionomia endureceu, a boca arredondou-se como se fosse dar um grito e bruscamente inteirisou-se para se afastar dele e retomar a atitude precedente...

- Vai indo... Habituar-me-ei... - disse com um tom igual e claro, - e, depois, tirando o lenço, assoou-se ruidosamente.
Podchiblo sentiu o peito oprimido. Era tudo aquilo, o gesto, a proximidade e os olhos azuis, imóveis e tranquilos.
Irritou-se contra si próprio, levantou-se e estendeu-lhe a mão sem dizer nada, com um ar zangado.

- Até à vista! - disse ela docemente.
Ele respondeu com um gesto de cabeça e afastou-se rapidamente, chamando-se enraivecidamente idiota e criança.
- Espera minha garota! Terás a paga! Vou fazer-te ver quem sou. Encarrego-me de te fazer passar esses ares de hipócrita! - ameaçou-a mentalmente, sem saber porquê. E todavia apercebia-se de que nada tinha contra ela.
Mas isso ainda mais lhe aumentava a ira.

III
Dez dias mais tarde, Podchiblo, vindo da feira caminhava na direcção do cais da Sibéria; parou ouvindo gritos de mulher, trocas de insultos e outros ruídos duma bulha escandalosa que chegava à rua pela janela dum café.
- Um agente! Socorro! - gritava uma voz ofegante. Ouviam-se pancadas medonhas com o barulho de ferragens, de móveis partidos e alguém, deliciado, mugia com voz de baixo que cobria toda a algazarra:
- Dá-lhe! Ainda!... Em cheio na tromba! E pumba!

Podchiblo trepou as escadas a correr, abriu passagem aos empurrões pela multidão que se tinha comprimido à porta da sala e o quadro seguinte apareceu-lhe à vista: inclinada para a frente, sobre uma mesa, o seu velho conhecimento, a mulher dos olhos azuis, tinha agarrado pelos cabelos uma outra mulher, e puxava-a para si, batendo-lhe na cara repetidas vezes, naquela cara aterrorizada e já inchada pelas pancadas.

Os olhos azuis, agora, estavam crispados pela crueldade, os lábios cerrados, vincos profundos saíam dos cantos da boca para o queixo, e aquele rosto que lhe era familiar, há pouco tão estranhamente sereno, tinha agora a expressão de animal bravio cheio duma fúria implacável. Era a cara de um indivíduo pronto a torturar indefinidamente o semelhante, a torturá-lo por prazer.

A vítima não fazia senão gemer; agitava-se com espasmos e batia estupidamente no ar com os braços.

Podchiblo sentiu uma onda de fúria invadi-lo: o desejo selvagem de se vingar de qualquer coisa sobre alguém. Atirou-se e, agarrando a mulher que batia pela cintura, arrancou-a com um puxão da vítima.
A mesa caiu num ruído de louça partida; o público gritava selváticamente, morrendo a rir.

Podchiblo via, como nas tonturas da embriaguez, passar e repassar à frente dos seus olhos um desfile de caraças vermelhas, bestiais; segurava a autora da rixa pela cintura e gritava-lhe raivosamente aos ouvidos.
- Ah! Escândalo? Desordem? Vais ver!

A que levara pancada caiu ao chão entre os fragmentos de loiça; estremecia com soluços entrecortados por guinchos histéricos...
- Aquela, excelência - disse à outra: - "Vai então, prostituta, animal!". Então a outra deu-lhe um murro. Vai ela atirou-lhe com a chávena de chá à cara, e então, eu agarro-te os cabelos, eu bato-te, eu bato-te! E depois, sou eu que lhe digo, uma sova de criar bicho! Que sarilho!
- Ah! então é isso? - rosnou Podchiblo, apertando a mulher cada vez mais contra si, e começando ele próprio a sentir ganas de se bater.
Debruçado à janela, bizarramente curvado, mostrando as costas largas, o pescoço arroxeado pela cólera, rugiu para a rua: - Cocheiro! Eh, cocheiro!
E um pouco mais tarde:

- Vamos, depressa... Para a esquadra! Toca a andar!... As duas! Vamos! De pé... E tu, onde estavas? E o teu serviço? Animal! Leva-as para a esquadra. À bruta! As duas... Vá!

O agente da polícia, forte e atarracado, empurrando ora uma, ora outra, com uma pancada nas costas, fê-las sair da sala.

- Dá-me... uma aguardente com água de Seltz, depressa! - disse Podchiblo ao criado, e deixou-se cair numa cadeira ao pé da janela, extenuado e furioso contra tudo e contra todos.

No dia seguinte de manhã ela estava à sua frente tão resoluta e calma como no primeiro encontro; fitava-o a direito nos olhos com o seu olhar azul e esperava o momento em que ele começasse a falar.
Podchiblo, que não tinha dormido o suficiente e se sentia exasperado, remexia os papéis que estavam em cima da mesa e, mau grado o seu mau humor, não sabia como encetar o diálogo.
As apóstrofes e injúrias habitualmente de rigor nestes casos não podiam sair-lhe da boca, e queria encontrar algo mais duro, mais violento que lhe atirasse à cara.

- Como é que isso começou, a vossa questão? Vamos, fala.
- Ela insultou-me... - pronunciou a mulher com um ar de dignidade.
- Que lindeza... Quem havia de dizer... - ironizou Podchiblo.
- Ela não tinha esse direito... Eu não sou como ela.
- Ai, minha avó! Então o que é que tu és?
- Eu, ora... é a miséria... sim... enquanto que ela...
- Ah! E ela, é por prazer, sem dúvida?
- Ela?
- Sim, ela. Tu julgas que é por prazer?
- Mas porque é que ela o faria? Ela não tem filhos, ela...
- Ah, aí está o que tu querias dizer... cala-te, reles estupor! Não me venhas para cá com a história dos filhos para me adoçar a boca... Vai-te, mas toma cuidado, se eu tornar a apanhar-te: mudada em vinte e quatro horas! Não penses em pôr os pés no terreno da feira! Percebeste? Bom! Eu conheço-as! Eu te direi! Escândalo! Faço-te ver o escândalo, eu, minha porcaria!
E, mais insultantes umas que outras, as palavras saíam da boca do polícia para saltar à cara da mulher. Ela empalideceu e os seus olhos franziram-se como na véspera, no café.

- Vai-te embora! - Trovejou Podchiblo, batendo brutalmente com o punho na mesa.
- Que Deus o julgue... - articulou ela secamente, em tom ameaçador. E saiu rapidamente do gabinete.
- Eu dou-te os juizes! - berrou Podchiblo.

Tinha tido prazer em humilhá-la. Aquele rosto calmo e o olhar direito dos olhos azuis tinham-no posto fora de si. Para que é que ela se punha a fingir e com presunções? Filhos? Parvoíces! Que descaramento! O que é que os miúdos têm a ver com isto? Uma debochada que se vai vender à feira e que arma em inocente... Uma mártir, por força... e os filhos! Onde quer ela chegar com isto? Não tem coragem de se portar mal francamente, e então vai chorar às portas que é miséria... Quem havia de dizer...

IV
No entanto, eles existiam: o rapaz, um pouco pálido e tímido, na sua farda velha e usada de liceal, com um barrete negro mal feito, por cima das orelhas, e a rapariguinha, com um impermeável de xadrez demasiado grande para ela. Lá estavam, os dois, nas pranchas do embarcadoiro de Kachine e tremiam de frio sob o vento do Outono, absorvidos pela sua conversa infantil e fácil. A mãe estava de pé, atrás deles, encostada a uma carga de mercadorias; e olhava-os carinhosamente com os seus olhos azuis. O rapaz parecia-se com ela; também tinha os olhos azuis; virava muitas vezes para a mãe a sua cabecita com um boné, cuja pala estava partida, e falava-lhe sorrindo. A rapariga tinha a cara muito marcada de varíola, o nariz era pontiagudo, os olhos grandes e cinzentos tinham um brilho vivo e inteligente. À volta deles, nas pranchas, alinhavam-se caixotes e embrulhos.
Estava-se no fim de Setembro: a chuva caía desde manhã, o cais estava ensopado em lama viscosa e o vento soprava, húmido e frio.

Vagas revoltas corriam sobre o Volga e batiam ruidosamente na margem. Por toda a parte havia um rumor surdo, pesado, violento... Gente de toda a espécie agitava-se, inquieta, precipitando-se não se sabe para onde... E, ao fundo do cais animado duma vida palpitante, o grupo formado pelas duas crianças e a mãe, esperando calmamente, saltava imediatamente aos olhos.
Zossime Podchiblo tinha notado o grupo há muito e, mantendo-se à distância, observava com uma atenção contida. Ele via todos os movimentos de cada um e envergonhava-se...

Vindo do cais da Sibéria, aproximava-se o vapor de Kachine; dentro de meia-hora partia para subir o Volga.

O público precipitava-se aos empurrões no desembarcadoiro.
A mulher dos olhos azuis inclinou-se para os filhos, endireitou-se, muito carregada de pacotes e embrulhos, e desceu as escadas, atrás dos dois filhos que iam de mão dada, carregados igualmente.
Podchiblo também devia ir ao desembarcadoiro. Não tinha vontade, mas era preciso, um pouco mais tarde, ela lá estava, não longe da bilheteira.
A mulher comprou um bilhete. Nas mãos tinha uma enorme carteira amarela, recheada de notas.

- Para mim, está a ver - dizia ela - precisava... Para os pequenos, uma segunda classe, vamos para Kostrona, e, para mim uma terceira. Um só bilhete para os dois miúdos, se for possível?... Não? Podia fazer-me um desconto? Muito obrigado! Deus lhe...
E ela afastou-se satisfeita. As crianças andavam à volta dela e, puxando-a pelo vestido, perguntavam-lhe qualquer coisa... Ela ouvia-os e sorria...
- Ah, Senhor! claro, eu compro-lhes, prometi! Então eu dizia que não? Cada um, dois? Bom... fiquem aí!

E dirigiu-se para a esplanada onde se vendia toda a espécie de artigos e frutas.

Pouco depois estava novamente ao pé das crianças e dizia-lhes:
- Toma, para ti, Babetle, um sabonete... Cheira muito bem! Toma, cheira! E, para ti, Pierrot, uma faca. Vês, eu lembro-me, não há nada que eu esqueça! E aqui estão dez laranjas. Comam-nas... Mas não agora...
O barco atracou ao pontão. Um choque. Toda a gente oscilou. A mulher, com um olhar inquieto pôs as mãos nos ombros dos filhos e apertou-os contra si. Os pequenos estavam calmos.

Tranquilizada por sua vez, começou a rir, e as crianças riram com ela. Puseram a prancha no seu lugar e a gente atirou-se para o barco.
- Esperem! Nada de empurrões, minha besta - ordenou Podchiblo, à frente de quem desfilavam os passageiros, a um carpinteiro carregado de serras, machados e outras ferramentas. - Desastrado! - Deixa passar a senhora e os filhos... Que bruto que és; meu pobre tiozinho! completou ele com mais doçura, logo que a senhora, aquela que ele conhecia e que tinha os olhos azuis, lhe sorriu e o saudou, passando à frente dele para subir para o vapor...

...Terceiro apito.
- Larga! - Ordenou o capitão do cimo da ponte.
O barco estremeceu e largou lentamente.

Podchiblo, passeando os olhos pelo povo concentrado na ponte e encontrando a mulher das pupilas azuis, tirou respeitosamente o boné e inclinou-se para a cumprimentar.

Ela respondeu-lhe com uma profunda vénia à russa e benzeu-se com fervor.
Ela partia para Kostrona com os filhos.

Podchiblo seguiu-a com o olhar durante alguns instantes, deu um profundo suspiro e saiu do desembarcadoiro para ir para o seu posto. Estava triste e abatido.”
Máximo Gorkii

Nenhum comentário: