Fogo Morto, Segunda Parte

Seu Lula de Holanda

“O caso de Neném com o promotor crescia para ele cada dia. Uma desconfiança constante não o deixava descansado. Na tarde em que viu o rapaz passar pela sua porta, num cavalo muito bonito, com destino ao Santa Rosa, imaginou que lhe preparasse uma traição em casa. Neném e Amélia estariam combinadas para qualquer movimento contra ele. Viu-o sumir-se na estrada e foi ver se a filha estaria na janela do alpendre do jardim. Lá estava Neném, debruçada, com os cabelos louros soltos. Seu Lula, quando a viu, não teve força para andar para a frente, mas gritou-lhe:

- Hein, menina sem-vergonha? Eu bem sabia que tu estavas aí esperando aquele cachorro, hein?
Neném, estupefata, não teve coragem para uma palavra. Mas D. Amélia chegou-se para saber o que se passava.

- Tu chegaste aqui, hein? Tudo está combinado.

- Combinado o que, Lula?

- Hein, pensam que me enganam? Vai lá para dentro, Neném.

D. Amélia ficou só com ele. Fez-se um silêncio pesado entre os dois. Foi o marido quem começou :

- Eu sei de tudo, hein, Amélia? Vocês duas pensam que me enganam, não é, Amélia? Hein, Amélia?

D. Amélia, mansa, com a voz trêmula:

- Mas Lula, você não está vendo que não há coisa nenhuma? Que tudo isto é sonho seu?

- Sonho, hein, Amélia ? Ninguém me engana. E com a voz dura: Mato esta menina e ela não se casa com este cafajeste. Ouviste, Amélia ?

E saiu para o alpendre onde a tarde amaciava tudo. Era tarde de junho, de verde pelos matos, de campo coberto de flores. Pela estrada passava uma tropa de aguardenteiros. Um homem parou para falar com o Coronel Lula. Era um sujeito de Goiana, velho conhecido do capitão Tomaz.

- Coronel, tem açúcar sumeno?

Seu Lula fez um esforço tremendo para falar :

- Não tem não, seu Félix. Vendi tudo para o sertão.

Mas o homem queria falar mais.

- Coronel, não tem aqui uma terrinha que me ceda para um mano meu? É homem trabalhador, Coronel, mas anda muito perseguido lá em Goiana. Tudo por questão de uma filha a quem fizeram mal a ela. E o mano teve que fazer um serviço no freguês. Família é o diabo, meu Coronel.
Seu Lula despertou com aquela história e quis saber de tudo, por que o homem matara o sujeito.
- Coronel, o tal era casado. E desencabeçou a menina. Ora, um homem de sentimento não podia fazer outra coisa. Comeu o bicho na faca. Foi pra rua, mas estão perseguindo ele por causa dum senhor de engenho que protegia o canalha.

Seu Lula dava o sítio ao irmão do velho Félix. E quando ele se foi, começou a imaginar em Neném. Não deixaria que a sua filha, que ele criara com tanto mimo, se casasse com um tipo de rua, um filho de alfaiate. Não, tudo que estivesse em suas mãos ele faria para evitar. O pobre irmão de Félix tivera coragem para liquidar o miserável que desgraçara a filha inocente. Era o que faria também. Mataria, sim, mataria o atrevido. Estava só, era doente, não tinha a fortuna de José Paulino, mas saberia defender a sua filha com a vida, com a sua morte, se preciso fosse. A casa-grande estava ainda no escuro e a voz de sua cunhada começava a impotuná-lo. Era um falar rouco, com as mesmas palavras. Nunca se importava com o que ela dizia dias e noites seguidas, a falar sem que desse por isto; e no entanto, agora dera para crescer-lhe aos ouvidos como gritos. Amélia acendeu o candeeiro da sala de jantar e mosquitos rodeavam a luz em enxames. A lâmpada do quarto dos santos queimava o azeite da lamparina de prata. Seu Lula chegou-se para lá e viu a cara comprida, os braços estendidos, as mãos sangrando de Deus. Olhou bem para a cara de seu Cristo. Era uma cara que ele gostava de ver, de sentir a dor que ela exprimia. Deus fora assim na terra, torturado, surrado, morto pelos infiéis. A casa, no vazio de todos os seus. Ele só naquela casa sabia que Deus derramara seu sangue para que o mundo o amasse. Não. Não, ele não deixaria que a sua filha se perdesse, se entregasse ao camumbembe. Por que amava a sua filha um miserável daqueles? Que havia nela que a conduzisse para a degradação? Antes morta, antes no caixão que nos braços do camumbembe. Ajoelhou-se para rezar. Ali, só no quarto, com os santos pelas paredes, com a imagem descarnada de S. Francisco, com o corpo estendido no túmulo de S. Severino, ele se sentia na maior intimidade com o seu Deus, com a sua Providência. Rezou até tarde da noite. Uma dormência tomou-lhe a perna direita. Amélia chamou-o para a ceia, e só com a voz da mulher lembrou-se que estivera ali mais de duas horas.

Começara a chover forte. As portas da casa-grande estavam fechadas. Saiu para examinar os ferrolhos, as trancas. Tudo estava muito bem fechado. Neném não viera para a mesa do chá. Quis que ela viesse. Mandou que a mulher fosse chamá-la. E quando a viu de olhos vermelhos de chorar, com a cabeça baixa, imaginou o ódio que não lhe teria. Era pai, e pai era somente para agüentar as fraquezas dos filhos. Estava sereno. Deus lhe dera calma, força para vencer os tumultos de sua alma. Não falou Amélia parecia com medo de qualquer coisa. O vento batia nas portas, bulindo com os ferrolhos. Tudo estava muito bem trancado. Então, seu Lula pôde olhar para a sua filha como uma propriedade sua, que ninguém tocaria. Uma onda de ternura envolveu-o naquele instante. Teve vontade de acariciá-la, de tocar nos seus cabelos louros, de vê-los entre as suas mãos como nos tempos de menina. Por que não era mais aquela menina que ele punha nos joelhos, que ele criara como a uma santa? Por que amaria aquele tipo, por que fugia de sua casa, de seus olhos, de suas mãos? Seria castigo de Deus? Não podia ser castigo de Deus. Deus era seu amigo, era todo seu. Olhava para Neném, e via nela a imagem de Nossa Senhora, a imagem de manto azul, de cabelos compridos, aquela que não fora tocada pelos homens. Não, Neném não poderia se entregar a um camumbembe, um pobre diabo. Quando ele se levantou para ir para o quarto de dormir, lembrou-se da infância, das noites de chuva, quando ia botá-la na cama, tão mansa, tão serena, tão do céu naqueles instantes. Não, ele não permitiria que mãos de homens fossem magoar a sua filha.
[...]

Seu Lula estirou-se no marquesão. Nisto ouviu passos de cavalo rondando a casa-grande. Acertou bem o ouvido e na calçada do alpendre batiam cascos de cavalos. De repente lhe veio à cabeça a idéia de um rapto. Sem dúvida que o promotor haveria combinado o furto de Neném. Estremeceu com aquela idéia, e quando deu por si já estava com o velho clavinote. Foi ao quarto da filha e esta ainda estava vestida, de vela acesa, lendo um livro de orações. A sua cara devia ser de uma fúria desesperada, porque Neném se levantou com medo. Não lhe disse nada, mas chamou Amélia que se recolhera.

- Amélia, hein, Amélia, daqui ela não sai.

A mulher alarmada procurou falar e não pôde. Seu Lula de arma nas mãos andava de um lado para outro, como se estivesse acossado, pronto para um ataque de vida ou morte.

- Mato estes cachorros, hein, Amélia, tudo estava preparado.

Na porta da sala de visita parou para escutar numa posição de caçador que espreita. Ouviram-se muito bem as passadas de um cavalo.

O miserável pensa que estou dormindo. Mas este desgraçado vai ver quem sou, hein?
As negras tremiam. D. Amélia correra para o oratório, e Neném chorava alto, enquanto D. Olívia no quarto chamava pela escrava que a criara.

- Ó Dorotéia, ó Dorotéia, vem me catar, Dorotéia.

Ouvia bem a voz de D. Amélia, rezando alto.

- Pára Amélia, pára. O desgraçado vai ver.

Aí seu Lula levantou a voz, como se falasse com o inimigo a dois passos:

- Miserável, sai de minha porta.

A chuva intensa e as passadas do cavalo continuavam na calçada do alpendre.

Seu Lula gritou outra vez com mais força.

- Eu te mato, miserável.

Fez-se outra vez silêncio. Só a chuva roncava com ventania que batia nas portas. O cavalo continuava pisando forte na calçada. D. Amélia chegara-se para perto do marido para contê-lo. Seu Lula empurrou-a para o lado.

- Eu mato este cachorro.

E num esforço desesperado, chegou-se para a porta, e abriu o ferrolho de ferro. O cavalo batia no tijolo da calçada. Seu Lula, com a porta aberta, correu para o alpendre e se ouviu o disparo rouco do clavinote. Com o tiro houve uma correria para o terreiro da casa-grande. Pouco depois o boleeiro Macário chegou espantado. Saíram com uma lamparina e encontraram estendida no chão, banhada em sangue, uma das bestas da almanjarra que havia saída do curral e se abrigara no alpendre, com o frio da noite. Seu Lula estava lívido, em pé, como se tivesse voltado dum imenso perigo. Não via nada e com o corpo todo estendeu-se no chão, com o ataque.”
José Lins do Rego

Nenhum comentário: