Depois da primeira viagem viciou. Vinha e voltava com um tio que fazia a linha entre o Recôncavo e a rampa do mercado, às vezes ficando dois, três dias na capital, entre uma viagem e outra.
A cada estada que fazia em Salvador ia gostando mais da cidade, fazendo amigos na rampa, conhecendo barraqueiros no interior do mercado, sempre cativando um e outro com suas brincadeiras e sobretudo com seu assovio.
Damasceno era especialista em assoviar. Dedicara-se desde pequeno a essa arte e tornara-se um craque, com interpretações brilhantes de músicas difíceis, tais como Tico-tico no fubá, Brasileirinho, Assustado e até peças de Ernesto Nazaré e de Pixinguinha. Possuía uma técnica especial e tirava trinados belíssimos, ora em repiques, como se fosse um canário da terra, ora em longos silvos, exibindo o seu fôlego.
Com o passar dos anos, Damasceno foi deixando a costela do tio e passou a morar em Salvador, no final de linha do Jardim Cruzeiro, depois que conheceu uma vendedora de mingau de tapioca e de lelê que fazia ponto numa das portas do mercado e se amasiou com ela. Aí, em vez de retornar à Maragogipe com o tio, ficava na capital para um salamaleque, um aconchego com a “Raimunda”, até que se estabeleceu de vez na casa da comadre.
Damasceno não era de se desprezar. É certo que não enxergava mas tinha outras virtudes as quais eram de muito agrado da freguesa do mingau. Além disso, possuía um bigodinho ralo e felpudo, considerado sensual e, com a arte de assoviar, ganhava algum dinheiro e até já fazia fama entre barraqueiros que o requisitavam para apresentações a turistas.
Criou até a roda do assovio e juntava gente naquele burburinho que era o mercado para ouvir sua flauta mágica interior. Nas apresentações, sempre terminava seus concertos executando o Hino Nacional estilizado ao seu modo, com uma abertura pomposa parecendo uma banda marcial e um grand-finalle arrebatador.
O escritor argentino Jorge Luís Borges dizia que ser cego tem suas vantagens. O dom artístico é uma delas e o prazer dos versos a seguinte. Em Blake, um soneto que escreveu para o livro A Cifra recita: “Onde estará a rosa que em tua mão/ pródiga, sem saber, íntimos dons?/ Não está na cor, porque a flor é cega/ nem na doce fragrância inesgotável,/ nem no peso da pétala”.
Damasceno era a Rosa Púrpura. Em pouco tempo, constituiu família e juntou o útil ao agradável. Quando o mingau de dona Didi terminava, a própria comparecia à roda do concerto para arrecadar os trocados que a população e os turistas ofertavam ao ceguinho. Corria o chapéu rebolando o traseiro e exibindo-se no alto de um tamanco de madeira com tiras de couro.
Na década de 60, com o incêndio do mercado, quase também ocorre uma tragédia na vida de Damasceno. Ficou desnorteado. As chamas destruíram o seu ponto de trabalho e, conseqüentemente, o seu ganho diário. Somados os anos, já estava há mais de 17 vivendo daquela prosa. Agora, onde iria encontrar os turistas, onde Didi venderia o mingau, onde tomaria sua pinga diária e até onde iria fazer suas necessidades fisiológicas. Mínimos detalhes que passavam por sua cabeça.
Orientado por Didi, estabeleceu-se nas portas do Elevador Lacerda, onde desciam e subiam milhares de passageiros diariamente. Não havia o charme nem o cheiro do mercado, do camarão seco e do peixe fresco, mas a possibilidade de ganho era real.
Assim Damasceno passou a dar um turno na entrada do Elevador, na Cayru, na Cidade Baixa, e o outro turno na saída, na Cidade Alta.
Certo dia, estava a fazer ponto na Praça Municipal quando lhe deu uma tremenda vontade de urinar. Estava no meio de uma apresentação e, de súbito, interrompeu o concerto. Aflito, tomou da bengala e saiu tateando em direção à Pastelaria Triunfo, na Ladeira da Praça, procurando, dessa forma, chegar ao mictório.
Um baiano caridoso, senhor de idade, vendo a aflição do ceguinho, aproximou-se e perguntou se o amigo estava precisando de alguma ajuda. Ao que Damasceno respondeu:
— Leve-me até a Triunfo pois necessito urgente tirar água do joelho.
O cidadão tomou o ceguinho pelo braço, deu umas duas ou três voltas na praça e, ao chegar no centro disse:
— Pode tirar a água do joelho neste local que ninguém está vendo. Há um muro alto e você não precisa ir até a pastelaria.
Damasceno não contou prosa: abriu a braguilha, retirou a “marinheira” e passou a aliviar-se.
No momento em que começou a irrigar a praça, populares que iam passando em direção ao elevador começaram a fazer blague: "Ei!, ai não é lugar, meu irmão", "Oh! Bahêa, toma vergonha na cara", "Praça não é pinico".
Damasceno, que estava muito apertado, não deu a menor atenção aos dichotes. Pacientemente, molhou a praça e, com calma, balançou a “frasqueira”, esperou que os pingos finais do xixi não molhassem sua calça e colocou-a para dentro. Em seguida, tateando em direção à Rua Chile, como retratou o poeta Milton: In this dark world and wide (neste mundo escuro e vasto) que é justamente o mundo dos cegos quando estão a sós, saiu a resmungar:
— Oh! terra de muro baixo.”
Tasso Franco
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