Tibúrcio

"Acreditava em tudo que lhe diziam. Ninguém era mais crédulo, mais confiante. O Andaraí em peso o conhecia como a figura mais ingênua do bairro.

Desde pequeno, Tibúrcio ficou assim, talvez por ter sido educado de catecismo à mão, aprendendo a distinguir o mal do bem, para manter-se fiel a princípios sãos.

Em tudo Tibúrcio acreditava.

Bom-de-bola, jogava como centroavante do Nabucodonosor Futebol Clube. Os adversários sabiam de sua permanente boa intenção. Muitas vezes, quando atacava o último reduto do time contrário — e sempre o fazia perigosamente, veloz como um torpedo, a driblar com agilidade de raio — alguém da defesa inimiga, para evitar que ele marcasse o gol, mentia:

— O juiz já apitou o impedimento.

Tibúrcio acreditava. E largava a bola...

Havia os cavalheiros que, todas as noites, se reuniam numa esquina da Rua Ernesto Sousa, para contar estórias fantásticas. Narravam casos de assombração, de visões formidáveis, aparições da meia-noite nas encruzilhadas, mula-sem-cabeça, lobisomem. Todos riam das invencionices. Mas Tibúrcio acreditava.

Até em pequenas coisas, como a presença da mosca do sono, a tsé-tsé, no Andaraí, Tibúrcio acreditava.

Viveu sempre na maior credulidade.

Trocou as vadiagens de rapaz por um emprego público. O centroavante se transformou em oficial administrativo. Mas aquela indefectível boa-fé continuou regendo-lhe; todos os passos, à frente de seu destino.

Na repartição, divertiam-se às suas custas:

— O elevador caiu.

Tibúrcio acreditava. E somente ele subia pelas escadas...

— Os bondes estão parados.

Tibúrcio acreditava. E regressava a pé, até prova em contrário...

— Hoje é ponto facultativo.

Tibúrcio acreditava. E sofria o desconto da falta, no ordenado...

Casou-se. Teve harmoniosa vida no lar.

Se confiava em todos e em tudo, por que não haveria de confiar na Esmeralda, bonita pedra preciosa que conheceu na Taba de Tupã, centro de umbanda dos mais conceituados da Pavuna? Esmeralda recebia o caboclo Sete Estalos, seu guia-de-cabeça e orixá de fé do Tibúrcio. Foi Sete Estalos quem determinou:

— Daqui a sete luas quero ver o filho casado com o meu cavalo.
O cavalo, como ficou dito, era a Esmeralda. Em qualquer coisa que ela dizia como sendo Sete Estalos, Tibúrcio acreditava. E se no caboclo Tibúrcio acreditava, como desobedecer a uma ordem sua?

Na sétima lua, Tibúrcio e o cavalo já eram marido e mulher.

O jovem par foi residir no Andaraí, no mesmo casarão em que Tibúrcio vivia com os pais. Depois de casada, porém, Esmeralda deixou de freqüentar a Taba de Tupã, a fim de não ter que ir, todas as semanas, à longínqua Pavuna. Em conseqüência, Sete Estalos passou a atender o casal em domicílio. E quando o marido sentia falta das sessões, Esmeralda recebia o caboclo e Tibúrcio acreditava.

Veio o primeiro filho, cinco meses depois do casamento. Sempre que Tibúrcio contava o tempo, Esmeralda fazia novos cálculos por cima dos dele e Tibúrcio acreditava. Suas contas provavam que o menino veio de sete meses e Tibúrcio acreditava. Aliás, era interessante ouvir Esmeralda falar do parto, porque ela explicava que Sete Estalos achara melhor a criança vir antes do tempo, uma vez que sete era o número principal da umbanda e fazia parte do nome do guia. E Tibúrcio acreditava.

Por esse motivo, deram o nome de Setembrino ao primogênito — o mesmo nome do dono do Armazém Trás-os-Montes, um luso senhor, de largos bigodes, o qual Esmeralda convidou para padrinho do pimpolho, na qualidade de representante de Sete Estalos. E quando diziam que era em virtude de tanto conviver com o padrinho que o pequeno Setembrino estava ficando parecido com o grande, Tibúrcio acreditava.

Esmeralda, durante longo tempo, foi a senhora mais popular do Andaraí. Se outras donas do bairro evitavam cumprimentá-la, os barbados tudo faziam para vê-la de perto. Morena e apetitosa, seus vestidos eram os mais notados porque ninguém os usava tão colantes. E quando ela explicava que vestido justo era moda, Tibúrcio acreditava.

Depois de Setembrino, os filhos decidiram vir de nove em nove meses. Sete Estalos achava que a família devia aumentar e Tibúrcio acreditava. O estado normal de Esmeralda passou a ser de gravidez. Mal saía um, entrava outro, E ela engordava e os vestidos ficavam apertados.

Todavia, a vida não ficou muito cara para Tibúrcio. A prole crescia, mas cada filho ganhava como padrinho um dos bons comerciantes do Andaraí. Manuel, o segundo, foi batizado pelo farmacêutico; Célia pelo açougueiro; Gilda pelo verdureiro; Catarina pelo senhorio; Catarino pelo lojista; e Gabriel pelo gerente da agência funerária Deus Salve a América. Assim, quando Tibúrcio falava em dinheiro para as despesas de roupa, comida ou aluguel, Esmeralda explicava por que não era necessário:

— Nossos compadres dão tudo aos afilhados.

Tibúrcio acreditava.

Não raro, Esmeralda chegava a casa tarde da noite. E contava um enredo:

— O ônibus chocou-se com um poste.

Tibúrcio acreditava.

— O dentista me fez esperar horas, só para mudar um algodãozinho.

Tibúrcio acreditava.

— O trânsito está inteiramente interrompido.

Tibúrcio acreditava.

Acreditava sempre. Nasceu para acreditar. Tudo que lhe diziam era sagrado:

— Sua esposa é uma santa.

Tibúrcio acreditava.

Homem feliz. Bom. Puro de alma. Amigo geral. E, principalmente, excelente chefe de família.

Basta dizer que os meninos o chamavam, manhosamente:

— Papai?... Papai!...

E Tibúrcio acreditava.”
Nestor de Holanda

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