A Vaidade Cega a Sabedoria

"Os sábios da terra não são os mais próprios para o governo dela. As Repúblicas, que se fundaram, ou se quiseram governar por sábios, perderam-se, acabaram-se; temos notícia delas pelo que foram, e não pelo que são. (...) As maiores crueldades, ou foram feitas, ou aconselhadas pelos Sábios; estes quando persuadem o mal, é com tanta veemência, e tão eficazmente, que as gentes na boa fé, buscam, e particam esse mal, como por entusiasmo, e sem advertirem nele. A impiedade, é uma das coisas que a ciência ensina; não porque seja o seu objecto, ou instituto, mas porque quando a impiedade é útil, à força de a ornar, se lhe tira o horror. A vaidade das ciências não consente, que haja cousa de que ela não possa, nem se saiba aproveitar.

Os erros comummente são partos da sabedoria humana; o errar propriamente é dos sábios, porque o erro supõe conselho, e premeditação; os ignorantes quási que obram por instinto; a ciência sabe legitimar o erro, a ignorância não; por isso nesta não há perigo de que ninguém o aprove; ao passo que naquela há o perigo de que a multidão o siga. O erro na mão de um sábio é como uma lança penetrante, e forte; na mão de um ignorante, é como uma arma quebrada, sem uso, nem consequência. As coisas parecem que recebem mais da forma, que se lhes dá, que da natureza que têm; não se atende à substância do mármore, ao polido sim; a dureza importa menos que a figura. As ciências são as que dão o lustre às coisas, e sempre dão o lustre que lhes parece; ou duvidoso, ou falso, ou verdadeiro; a vaidade, é o artífice.
Matias Aires, in 'Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens e Carta Sobre a Fortuna'

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