Porque o nosso maior bem, como António Vieira contradizia, é nunca estarmos satisfeitos. Nas nossas cabeças perversas e almas amarguradas, onde se acham todas as coisas portuguesas tal e qual achamos que deviam ser, Portugal é o país mais perfeito do mundo. Já isso é uma espécie de país, melhor do que os países reais onde as pessoas estão realmente convencidas que as coisas correm muito bem. Aprendemos a viver com esse país. E alguns conseguiram mesmo viver nele.
Desdenhar o que se tem e elogiar o que têm os outros, mas sem querer trocar, é a principal característica do aristocrático feitio do povo português. Às vezes penso que dizemos tanto mal de Portugal e dos portugueses para que não sejam os estrangeiros a fazê-lo. Monopolizamos a maledicência para nos defendermos; para evitar a concorrência. E a prova de que amamos Portugal é a maneira como não consentimos a estrangeiro nenhum dizer mal das nossas coisas, sobretudo quando ele diz a verdade.
É fácil pensar que o Portugal Ideal, onde todas as coisas correm bem, já existiu. Não há português que não tenha a sua metade saudosista. Mais fácil ainda, é pensar que esse país ainda está por vir. Também não há português que não tenha a outra metade sebastianista. A verdade é que sempre existiu. A graça é que esse país ideal faz parte do outro. Quando se cruzam as coisas, quando as paisagens dos sonhos se sobrepõem às concretas, sempre que um português sobe à altura de Portugal, nunca se duvida do sentido que tem a existência desde país.
Como quase todos os portugueses, eu quase me orgulho de ser português e quase amo Portugal. No «quase» vai a distância bastante para não enlouquecer, entre o que se quer e o que se vê.
Na coluna semanal que escrevo para o «Expresso» desde Maio de 1983, essa distância parece-me óbvia. No meu caso, a minha obsessão com Portugal e com os portugueses é mais grave do que aquilo que disse deles. À distância natural que me vem de ser meio-inglês, e de ter tido uma educação semibritânica, também se há-de somar alguma mágoa de não ter conseguido ser mais português. Os convertidos são sempre os mais fanáticos, de resto. Daí que a graça que tenham os artigos que escrevi, toda ela graças à graça que continuo a achar aos portugueses (tanto no sentido divino como terrestre), possa ser atribuída à estranha mistura de turista e indígena que eu, para mal dos meus muitos pecados, continuo a ser. A minha única consolação é que ainda estou por encontrar um português genuinamente português. Tal como a causa destas coisas todas.
Miguel Esteves Cardoso, in 'A Causa das Coisas'
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