A Ilusão da Consistência da Obra do Escritor

O homem não é permanentemente igual a si mesmo. A velha concepção dos carácteres rectilíneos e das mentalidades cristalizadas em sistemas imutáveis abriu falência. Tudo muda, no espaço e no tempo. Para um organismo vivo, existir - mesmo no ponto de vista somático - é transformar-se. Quando começamos cedo e envelhecemos na actividade das letras, não há um nós apenas um escritor; há, ou houve, escritores sucessivos, múltiplos e diversos, representando estados de evolução da mesma mentalidade incessantemente renovada. Ao chegar a altura da vida em que a estabilização se opera, olhamos para trás, e muitas das nossas próprias obras parecem-nos escritas por um estranho, tão longe se encontram já, não apenas dos nossos processos literários, mas do nosso espírito, das nossas tendências, da nossa orientação, dos nossos pontos de vista éticos e estéticos.

Nesse exame retrospectivo, por vezes doloroso, se de algumas coisas temos de louvar-nos - obras a que a nossa mocidade comunicou a chama viva do entusiasmo e da paixão -, de outras somos forçados a reconhecer a pobreza da concepção, os vícios da linguagem, as carências da técnica, e tantas vezes (poenitet me!) as audácias, as incoerências, as injustiças, as demasias, a licença de certas pinturas de costumes e o erro de certas atitudes morais. É preciso começar - bem o sei - na literatura como na vida. Il faut que jeunesse se passe. Mas, quando vejo alguns jovens das letras, deslumbrados de si próprios, passeando imponentemente os loiros dos seus primeiros livros e a sua inabalável certeza da imortalidade, penso na desilusão que os espera ao assomar dos primeiros cabelos brancos (a pior das desilusões, que é a que sentimos perante nós mesmos) e no aborrecimento que lhes causará um dia a reeedição de alguns dos seus livros da juventude - se, porventura, tiverem praticado a imprudência de alienar a propriedade da sua obra.
Júlio Dantas, in "Páginas de Memórias"

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