Que havia, pois, mais para a vida, para
responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na
execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o
nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A
vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso
estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária.
O
absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia
revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças
derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao
esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se
ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e
a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é
dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é.
Que o despreze e o amordace
o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como
condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a
gratuitidade deste milagre de sermos. Que ao menos nós lhe demos, a isso que
somos, a oportunidade de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até
enrouquecermos. Iluminarmos a brasa que vive em nós até nos consumirmos.
Respondermos com a absoluta liberdade ao desafio do fantástico que nos habita.
Somos cães, ratos, escaravelhos com consciência? Que essa consciência esgote
até às fezes a nossa condição de escaravelhos.
Vergílio Ferreira, in 'Aparição (discurso da personagem Sofia)
Vergílio Ferreira, in 'Aparição (discurso da personagem Sofia)
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