Há dentro de nós um poço. No fundo dele é
que estamos, porque está o que é mais nós, o que nos individualiza, a fonte do
que nos enriquece no em que somos humanos. E a vida exterior, o assalto do que
nos rodeia, o que visa é esse íntimo de nós para o ocupar, o preencher, o
esvaziar do que nos pertence e nos faz ser homens. Jamais como hoje esse
assalto foi tão violento, jamais como hoje fomos invadidos do que não é nós. É
lá nesse fundo que se gera a espiritualidade, a gravidade do sermos, o encantamento
da arte. E a nossa luta é terrível, para nos defendermos no último recesso da
nossa intimidade. Porque tudo nos expulsa de lá Quando essa intimidade for
preenchida pelo exterior, quando a materialidade se nos for depositando dentro,
o homem definitivamente terá em nós morrido.
Já há exemplos disso. Um dos mais perfeitos
chama-se robot. É invencível pensarmos o que será o homem amanhã. E nenhuma
outra imagem se nos impõe com mais força. Mas o que desse visionar mais nos
enriquece a alma é que o homem então será possivelmente feliz. Porque ser homem
não é ter felicidade mas apenas ser humano. Não há grandeza nenhuma feliz e é
decerto por isso que se diz que os felizes não têm história. A única felicidade
compatível com a grandeza é a que já não tem esse nome, mesmo que o tenha.
Chamemos-lhe apenas compreensão ou aceitação.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'
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