O comportamento moral implica sempre um
juiz e a memória nele desse nosso comportamento. Assim se admite a nossa
responsabilidade perante outrem e a ideia de que nesse outrem perdurará a
memória de nós pelos séculos. Ora o que é que significa hoje o comportamento
dos que viveram há cem anos? e há mil? Quando Deus se dava ao luxo de existir,
ele garantiria a memória do que fomos. Mas agora que ele desistiu? E todavia a
ordem moral continua. O «se Deus não existe tudo é permitido» de Dostoievski é
perfeitamente ilusório. Nós construímos a nossa moral como se ela existisse.
Alguma coisa portanto deve persistir perante a qual nos comportamos.
Os homens célebres compreende-se. Mas o
comum dos mortais? Será a «consciência» um hábito? Teremos nós a vocação da
imortalidade para agirmos dentro dela? Perante quem nos comportaríamos numa
ilha deserta com a certeza absoluta de que ninguém saberia dos nossos actos?
Que é que persiste de nós após a morte para nos julgarmos vivos então e
podermos envergonhar-nos do mal que tivéssemos praticado? Toda a nossa vida é
tecida de ilusão. E nada em nós consente que a dissipemos. Mas o próprio animal
tem um comportamento que pode prejudicá-lo e de que não abdica. Dois galos que
se combatem até à morte obedecem a um código em que não há Deus nem juízos
morais. A ética é assim um absurdo sem a mínima justificação. Mas a vida também
a não tem. Dizemos assim que a moral é imperiosa e injustificável.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'
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