A acção mais degradada é a daquele que não
age e passa procuração a outrem para agir - a dos frequentadores dos
espectáculos de luta e a dos consumidores da literatura de violência. Ser herói
e através de outrem, ser corajoso em imaginação, é o limite extremo da acção
gratuita, do orgulho ou da vaidade que não ousa. Corre-se o risco sem se
correr, experimenta-se como se se experimentasse, colhe-se o prazer do triunfo
sem nada arriscar. E é por isso que os fIlmes de guerra, do heroísmo policial,
de espionagem, têm de acabar bem. Porque o que aí se procura é justamente o
sabor do triunfo e nâo apenas do risco. O gosto do risco procura-o o herói
real, o jogador que pode perder. Mas o espectador da sua luta, degradado na
sedução da acção, acentua a sua mediocridade no não poder aceitar a derrota, no
fingir que corre o risco mesmo em ficção, mas com a certeza prévia de que o
risco é vencido. O que ele procura é a pequena lisonja à sua vaidade pequena, a
figuração da coragem para a sua cobardia, e só a vitória do herói a quem passou
procuração o pode lisonjear.
E se o herói morre em grandeza, há o prazer
ainda de o espectador estar vivo para saborear a coragem do que morreu e a não
pode já saborear. A vida do herói estende-se assim para além da sua morte onde
a espera o espectador para se investir da glória que lhe coube e ele já não
pôde gozar. É de dentro da vida e do conforto que o espectador da coragem
saboreia o prazer da coragem que não tem. Daí às vezes a ilusão de que também
ele poderia enfrentar os mesmos riscos, se os enfrentasse. O que lhe fica à
superfície de toda a acção é o gosto dessa acção e não a dificuldade de a
realizar. Daí que na realidade ele pudesse talvez atirar-se a essa acção, se
tudo fosse possível efectivar-se num momento - no momento em que não teve tempo
ainda de conhecer o que aí se esconde, no momento em que não teve tempo de
saber que não era corajoso. Daí que num comício de heroísmo o heroísmo seja
fácil e os heróis voluntários se possam recrutar aos montôes: a dureza com que
se conquista esse heroísmo não se vê sob os braços erguidos que o festejam...
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'
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