O grande conflito de hoje, no domínio
socioeconómico, por exemplo, e contra a previsão de um Marx, não é o que opõe o
Capital e o Trabalho, mas o que comanda a máquina e o que a serve (François
Perroux). Mas o efeito mais visível, porque mais extenso, da sua compacta
presença, é o que degrada os sonhos ao tangível e utilitário que define a
vituperada «sociedade de consumo». Não é assim o útil ou utilitário que se
condena: é a sua divinização. O que surpreende no mundo de hoje não é a sedução
da comodidade, mas que ela esgote todas as seduções; não é o sonho de «viver
bem», mas que só se viva bem com esse sonho. Decerto o viver bem foi sempre um
sonho de quem teve por sorte o viver mal. Mas a realização em massa dessa
ambição instaura-se em plena força como modelo. E não apenas por ser uma
realização em massa, mas porque aos «responsáveis» nenhum valor se impõe para a
esse imporem.
O utilitarismo é um valor negativo; mas converte-se em positivo
pela negatividade de quem poderia recusá-lo. O que nos «irresponsáveis» é uma
ambição em positivo, é nos «responsáveis» uma aceitação em negativo, porque
nenhum valor positivo lhe contrapõem. Um automóvel é para uns um fim; mas se
para outros deveria ser um meio, ele é um meio para coisa nenhuma e converte-se
desse modo também num fim. O optimismo da conquista converge assim com o pessimismo
da desistência para um vértice comum. Decerto não se ignora a contestação
sofrida pela «sociedade de consumo». Mas a contestação só se realiza em
eficácia, se o não é uma abertura para o sim. Denunciar um erro é necessário;
mas quem tem uma verdade, mesmo errada, pode exigir-nos a verdade certa - e nós
não a temos.
Mas o sonho utilitário não apaga o sonho
como tal, o que no homem, porque humano, é ainda o sem-limite. Porque se não
reinventa um homem totalmente, mesmo o homem circunscrito ao tangível do
utilitário. Curiosamente assim o próprio sonho se degrada sem se anular como
sonho. Curiosamente assim o homem é ainda o «ser de horizontes» (Heidegger),
ainda quando esse horizonte for a montra de uma loja... O mais que nunca é
bastante, o máximo que está para além de todos os máximos e é em si o máximo
humano, converte-se agora não no que supere os limites do utilitário mas no que
supere os limites de cada objecto útil. Assim o absurdo limite que num Sartre é
o homem-deus é no societário de consumo o automóvel-perfeição, o
aparelho-absoluto. Eis porque o reclame do super é uma constante de um reclame
- desde o super-detergente ao super-Constelation. O super fala em linguagem
degradada o que em linguagem humana fala da nossa ascensão. [Assim a própria
crise do casamento - uma determinante do nosso tempo - pôde ser reportada à
insatisfação no «consumo» (Eduardo Lourenço); assim uma mulher se pôde
igualar, na sedução, ao frigorífico ou ao aspirador. .. Mas é possível, se não
evidente, que a razão esteja mais longe - na radical exterioridade que a
tecnologia promove em cuja superfície estéril um valor se não radica.]
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'
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