Um Estado Desacostumado

Não é impossível assistir a um desvio anormal no funcionamento latente ou visível das leis da natureza. Efectivamente, se qualquer um se der ao engenhoso trabalho de interrogar as diversas fases da sua existência (sem esquecer qualquer delas, porque talvez fosse essa a que estava destinada a fornecer a prova do que afirmo), não será sem um certo espanto, que noutras circunstâncias seria cómico, que se recordará de que em determinado dia, para começar a falar de coisas objectivas, foi testemunha de qualquer fenómeno que parecia ultrapassar, e positivamente ultrapassava, as noções conhecidas fornecidas pela observação e pela experiência, como, por exemplo, as chuvas de sapos, cujo mágico espectáculo não foi a princípio compreendido pelos sábios. 

E de que, noutro dia, para falar em segundo e último lugar de coisas subjectivas, a sua alma apresentou ao olhar investigador da psicologia, não vou ao ponto de dizer uma aberração da razão (que, no entanto, não deixaria de ser curiosa; pelo contrário, ainda o seria mais), mas, pelo menos, para não me fazer rogado perante certas pessoas frias, que nunca perdoariam as locubrações flagrantes do meu exagero, um estado desacostumado, muitas vezes gravíssimo, que significa que o limite concedido pelo bom-senso à imaginação é, por vezes, apesar do pacto efémero concluído entre estas duas faculdades, infelizmente ultrapassado pela pressão enérgica da vontade, mas, quase sempre, também, pela ausência da sua efectiva colaboração: como prova, vamos a alguns exemplos, cuja oportunidade é fácil de avaliar, desde que, porém, tomemos por companhia uma atenta moderação. Apresento dois: as exaltações da cólera e as doenças do orgulho.
Isidore de Lautréamont, in 'Cantos de Maldoror'

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