Vós quereis tentar a sorte na grande
cidade, e sabeis bem que é lá que deveis gastar essa aura de valentia que a
longa inacção dentro destas muralhas vos houver concedido. Procurareis também a
fortuna, e devereis ser hábil a obtê-la.
Se aqui aprendeste a escapar à bala de
um mosquete, lá deveis aprender a saber escapar à inveja, ao ciúme, à
rapacidade, batendo-vos com armas iguais com os vossos adversários, ou seja,
com todos. E portanto escutai-me. Há meia hora que me interrompeis dizendo o
que pensais, e com o ar de interrogar quereis mostrar-me que me engano. Nunca
mais o façais, especialmente com os poderosos. Às vezes a confiança na vossa
argúcia e o sentimento de dever testemunhar a verdade poderiam impelir-vos a
dar um bom conselho a quem é mais do que vós. Nunca o façais. Toda a vitória
produz ódio no vencido, e se se obtiver sobre o nosso próprio senhor, ou é
estúpida ou é prejudicial. Os príncipes desejam ser ajudados mas não superados.
Mas sede prudente também com os vossos
iguais. Não humilheis com as vossas virtudes. Nunca falei de vós mesmos: ou vos
gabaríeis, que é vaidade, ou vos vituperaríeis, que é estultícia. Deixai antes
que os outros vos descubram alguma pecha venial, que a inveja possa roer sem
demasiado dano vosso. Devereis ser de bastante e às vezes parecer de pouco. A
avestruz não aspira a erguer-se nos ares, expondo-se a uma exemplar queda:
deixa descobrir pouco a pouco a beleza das suas plumas. E sobretudo, se
tiverdes paixões, não as ponhais à vista, por mais nobres que vos pareçam. Não
se deve consentir a todos o acesso ao nosso próprio coração. Um silêncio cauto
e prudente é o cofre da sensatez.
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'
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