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Sentidos Inconscientes


Nada consola mais o autor de um romance do que descobrir as leituras nas quais não havia pensado e que lhe são sugeridas pelos leitores... Não digo que o autor não possa descobrir uma leitura que lhe pareça aberrante, mas em todos os casos deveria calar-se: que os outros a contestem, texto em punho. De resto, a grande maioria dos leitores faz-nos descobrir efeitos de sentidos nos quais não havíamos pensado. Mas o que significa o facto de não termos pensado naquilo?
Umberto Eco, in 'Apostilha ao «Nome da Rosa»'

Um Silêncio Cauto e Prudente é o Cofre da Sensatez


Vós quereis tentar a sorte na grande cidade, e sabeis bem que é lá que deveis gastar essa aura de valentia que a longa inacção dentro destas muralhas vos houver concedido. Procurareis também a fortuna, e devereis ser hábil a obtê-la.

Se aqui aprendeste a escapar à bala de um mosquete, lá deveis aprender a saber escapar à inveja, ao ciúme, à rapacidade, batendo-vos com armas iguais com os vossos adversários, ou seja, com todos. E portanto escutai-me. Há meia hora que me interrompeis dizendo o que pensais, e com o ar de interrogar quereis mostrar-me que me engano. Nunca mais o façais, especialmente com os poderosos. Às vezes a confiança na vossa argúcia e o sentimento de dever testemunhar a verdade poderiam impelir-vos a dar um bom conselho a quem é mais do que vós. Nunca o façais. Toda a vitória produz ódio no vencido, e se se obtiver sobre o nosso próprio senhor, ou é estúpida ou é prejudicial. Os príncipes desejam ser ajudados mas não superados.

Mas sede prudente também com os vossos iguais. Não humilheis com as vossas virtudes. Nunca falei de vós mesmos: ou vos gabaríeis, que é vaidade, ou vos vituperaríeis, que é estultícia. Deixai antes que os outros vos descubram alguma pecha venial, que a inveja possa roer sem demasiado dano vosso. Devereis ser de bastante e às vezes parecer de pouco. A avestruz não aspira a erguer-se nos ares, expondo-se a uma exemplar queda: deixa descobrir pouco a pouco a beleza das suas plumas. E sobretudo, se tiverdes paixões, não as ponhais à vista, por mais nobres que vos pareçam. Não se deve consentir a todos o acesso ao nosso próprio coração. Um silêncio cauto e prudente é o cofre da sensatez.
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'

O Verdadeiro Filósofo


Se a ideia de Deus não é conhecida na natureza, deve portanto tratar-se de uma invenção humana... Mas não me olheis como se eu não tivesse sãos princípios e não fosse um fiel servidor do meu rei. Um verdadeiro filósofo não pretende de modo algum subverter a ordem natural das coisas. Aceita-a. Só pretende que o deixem cultivar os pensamentos que consolam uma alma forte. Para os outros, é uma sorte que existam papas e bispos para reter as multidões da revolta e do crime. A ordem do Estado exige uma uniformidade do comportamento, a religião é necessária ao povo e o sábio deve sacrificar parte da sua independência para que a sociedade se mantenha firme.
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'

É Virtude Dissimular a Virtude


Vede, caro Roberto, o senhor de Salazar não diz que o sensato deve simular. Sugere-vos, se bem entendi, que deve aprender a dissimular. Simula-se o que não se é, dissimula-se o que se é. Se vos gabardes do que não fizestes, sois um simulador. Mas se evitardes, sem fazê-lo notar, mostrar em pleno o que fizestes, então dissimulais. É virtude acima de todas as virtudes dissimular a virtude. O senhor de Salazar está a ensinar-vos um modo prudente de ser virtuoso, ou de ser virtuoso de acordo com a prudência. Desde que o primeiro homem abriu os olhos e soube que estava nu, procurou cobrir-se até à vista do seu Fazedor: assim a diligência no esconder quase nasceu com o próprio mundo. Dissimular é estender um véu composto de trevas honestas, do qual não se forma o falso mas sim dá algum repouso ao verdadeiro.

A rosa parece bela porque à primeira vista dissimula ser coisa tão caduca, e embora da beleza mortal costume dizer-se que não parece coisa terrena, ela não é mais do que um cadáver dissimulado pelo favor da idade. Nesta vida nem sempre se deve ser de coração aberto, e as verdades que mais nos importam dizem-se sempre até meio. A dissimulação não é uma fraude. É uma indústria de não mostrar as coisas como são. E é indústria difícil: para nela ser excelente é preciso que os outros não reconheçam a nossa excelência. Se alguém ficasse célebre pela sua capacidade de camuflar-se, como os actores, todos saberiam que ele não é o que finge ser. Mas dos excelentes dissimuladores, que existiram e existem, não se tem notícia alguma. 

- E notai - acrescentou o senhor de Salazar -, que convidando a dissimular não vos convidamos a permanecer mudo como um parvo. Pelo contrário. Deveis aprender a fazer com a palavra arguta o que não podeis fazer com a palavra aberta; a mover-vos num mundo que privilegia a aparência, com todos os desembaraços da eloquência, a ser tecelão de palavras de seda. Se as flechas perfuram o corpo, as palavras podem trespassar a alma.
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'

O Amor não Existe sem Ciúme


Se o ciúme nasce do intenso amor, quem não sente ciúmes pela amada não é amante, ou ama de coração ligeiro, de modo que se sabe de amantes os quais, temendo que o seu amor se atenue, o alimentam procurando a todo o custo razões de ciúme. 

Portanto o ciumento (que porém quer ou queria a amada casta e fiel) não quer nem pode pensá-la senão como digna de ciúme, e portanto culpada de traição, atiçando assim no sofrimento presente o prazer do amor ausente. Até porque pensar em nós que possuímos a amada longe - bem sabendo que não é verdade - não nos pode tornar tão vico o pensamento dela, do seu calor, dos seus rubores, do seu perfume, como o pensar que desses mesmos dons esteja afinal a gozar um Outro: enquanto da nossa ausência estamos seguros, da presença daquele inimigo estamos, se não certos, pelo menos não necessariamente inseguros. O contacto amoroso, que o ciumento imagina, é o único modo em que pode representar-se com verosimilhança um conúbio de outrem que, se não indubitável, é pelo menos possível, enquanto o seu próprio é impossível. 

Assim o ciumento não é capaz, nem tem vontade, de imaginar o oposto do que teme, aliás só pode obter o prazer ampliando a sua própria dor, e sofrer pelo ampliado prazer de que se sabe excluído. Os prazeres do amor são males que se fazem desejar, onde coincidem a doçura e o martírio, e o amor é involuntária insânia, paraíso infernal e inferno celeste - em resumo, concórdia de ambicionados contrários, riso doloroso e friável diamante.
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'

"Lamentamos comunicar-lhe que seu livro..."

"ANÔNIMO

A BíBLIA

Devo confessar que quando comecei a ler os originais, e durante as primeiras páginas, senti-me entusiasmado. Ali há ação pura e tudo o mais que o leitor de hoje exige de uma obra de evasão: sexo (muitíssimo), com adultério, sodomia, homicídio, incesto, guerras, etc.

O episódio de Sodoma e Gomorra, com os travestis que pretendem violar os anjos, é digno de Rabelais; as histórias de Noé são o mais puro Emilio Salgari; a fuga do Egito é uma história que, mais cedo ou mais tarde, acabará sendo filmada... Em resumo, trata-se do verdadeiro roman-fleuve bem estruturado, que não economiza efeitos, pleno de imaginação com aquela dose de messianismo que agrada, sem chegar ao trágico.

Mais adiante, no entanto, percebi que se trata, na verdade, de uma antologia de vários autores, com muitos, excessivos, trechos do poesia, alguns francamente lamentáveis e aborrecidos, choradeira sem pé nem cabeça.

O resultado é um feto monstruoso que corre o risco de não agradar a ninguém, porque tem de tudo. Além disso, será cansativo estabelecer a questão dos direitos de tão diferentes autores, a menos que o representante de todos eles se encarregue da tarefa. Mas nem no índice encontrei o nome desse representante, como se houvesse da parte dos autores interesse em manter seu nome oculto.

Talvez fosse possível publicar separadamente os primeiros cinco livros. Aí estaríamos pisando em terreno firme. Com o título: Os Desesperados do Mar Vermelho.


HOMERO

A ODISSÉIA

Pessoalmente, o livro me agrada. A história tem beleza, é apaixonante, cheia de aventuras. Tem a dose exata de amor, fidelidade e de escapadas adulterinas (multo boa a figura de Calipso, uma típica devoradora de homens); tem, inclusive, um momento "lolitico", na melhor linha nabokoviana, com uma ninfeta chamada Nausicaa: no episódio, o autor se permite algumas ousadias, mas em momento nenhum incorre em excessos. O conjunto é excitante. As cenas merecem figurar ao lado das melhores já produzidas no gênero western: a luta é violenta, a cena do arco explora, até as últimas possibilidades, o potencial literário de suspense.

Que mais poderia dizer? Leio essa de um sopro, melhor que o primeiro livro do autor, excessivamente estático em sua insistência de permanecer no mesmo lugar, cansativo pela exuberância de acontecimentos (na terceira batalha e no décimo duelo, o leitor já entendeu todo o mecanismo). Ademais, a história de Aquiles e Patrocio, com seu fio latente de homossexualidade, nos transmite um certo desagrado. Ao contrário, neste segundo livro, tudo caminha maravilhosamente; até o tom é mais sereno: pensado mas não reflexivo. Depois, a montagem, o jogo de flash-backs, o encadeamento das histórias! Em suma, muita categoria. De fato, esse Homero tem talento.

Talento demais, seria o caso de dizer... Chego a me perguntar se tudo ali será farinha do mesmo saco. Sabe-se como é: escrevendo, escrevendo, a gente melhora (quem sabe se o terceiro livro será um estouro). Mas o que me faz vacilar (e, afinal, me leva a opinar negativamente) é a confusão que pode resultar da questão de direitos.

Antes de tudo, é impossível localizar o autor. Os que o conhecem dizem que, de toda maneira, seria inútil discutir com ele as pequenas modificações que deviam ser introduzidas no texto, pois é cego como uma toupeira e, em mais de uma ocasião, deu provas de ser incapaz sequer de escrever. Dizem que tinha seus originais na memória, mas que não estava muito seguro do que havia escrito, alegando que o copista havia introduzido interpolações na obra. Terá ele sido o autor ou apenas um testa-de-ferro?


DANTE

A DIVINA COMÉDIA

O trabalho de Alighieri, embora de um típico escritor de fim de semana que, na vida sindical, está filiado ao órgão de classe dos farmacêuticos, demonstra indubitavelmente, certo talento técnico e notável "alento" narrativo. A obra (em florentino vu!gar) compõe-se de quase 100 cantos em tercetos rimados e se constitui em leitura agradável e interessante. Gosto, principalmente. de suas descrições de astronomia e certos juízos concisos e densos, que faz com freqüência, sobre teologia. Mais inteligível e popular é a terceira parte do livro, que diz respeito a assuntos mais do gosto da maioria, e que concernem aos interesses cotidianos do possível leitor (assuntos tais como a salvação, a visão beatifica, a devoção à Virgem Maria). Obscura e caprichosa é a primeira parte, com passagens de baixo erotismo, violência e trechos francamente grosseiros. Esta é uma das poucas contra-indicações para superar esse primeiro "canto", o qual, quanto à criatividade, não diz mais do que já foi dito por milhares de manuais sobre o outro mundo.


DIDEROT

A RELIGIOSA

Confesso que não cheguei a folhear os manuscritos, mas acredito que um critico deve saber, até de olhos fechados, o que deve e o que não deve ler. Conheço esse Diderot: redige enciclopédias e agora tem em mãos um projeto de obra em não sei quantos volumes, que provavelmente jamais será editada. Anda por toda parte procurando desenhistas capazes de copiar o mecanismo de um relógio, ou as minúcias de uma tapeçaria de Gobelin, e levará à falência seu editor. Não creio que se trate do homem indicado para escrever algo divertido numa narrativa, especialmente para uma coleção como a nossa, na qual sempre incluímos coisas delicadas, um pouquinho picantes, como Restif de la Bretonne.


SADE

JUSTlNE

O manuscrito estava em meio a um monte de coisas que eu devia ver esta semana, e, para ser sincero, não o li todo. Limitei-me a abri-lo três vezes, ao acaso, em três lugares diferentes, e vocês sabem que para um olho experimentado isso é mais que o bastante.

Bem, da primeira vez encontrei uma avalanche de páginas de filosofia da natureza com divagações sobre a crueldade e a luta pela sobrevIvência, sobre a reprodução dos vegetais e a evolução das espécies animais. Da segunda vez, deparei com pelo menos 15 páginas sobre o conceito de prazer, sobre os sentidos e a imaginação, e mais coisas desse gênero. Da terceira vez, outras 20 páginas sobre as relações de submissão entre o homem e a mulher, nos diferentes países do mundo... Acho que isso basta. Não estamos procurando uma obra de filosofia; o público, hoje, quer sexo e mais sexo. Não importa a maneira como ele venha temperado.


CERVANTES

DOM QUIXOTE

O livro, nem sempre inteligível, é a história de um gentil homem espanhol e de seu criado, os quais vão pelo mundo perseguindo sonhos de cavalaria. Esse Dom Quixote é um tanto louco (sua figura é magnificamente concebida: de fato, Cervantes sabe narrar), enquanto seu criado é um simplório (dotado de certo e rude bom senso), com o qual o leitor logo se identifica, quando ele procura desmistificar as fantasias de seu amo. Até aqui o argumento, que se desdobra com alguns bons efeitos e com freqüentes episódios divertidos, parece bem. Mas a observação que quero fazer vai além de um juízo pessoal sobre a obra.

Em nossa bem sucedida coleção econômica Os Fatos da Vida, publicamos, com êxito notável, obras como Amadis de Gaula, A Lenda do Graal, O Romance de Tristão, etc. Agora temos opção de editar Reis da França, do mocinho de Barberino, livro que para mim será o grande êxito do ano. Pois bem, se nos decidirmos por Cervantes, poremos em circulação um livro que, não obstante ser muito bem feito, atirará no lixo o publicado até agora, fazendo esses outros romances parecerem coisa de idiota. Compreendo a liberdade de expressão, o clima de rebeldia e tudo o mais, mas não podemos nos prejudicar a nós mesmos. A última coisa que desejo é que, buscando novidades a qualquer preço, acabemos por comprometer uma linha editorial que até agora foi popular, moral e também rendosa. Recusar.


PROUST

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Trata-se,sem mais nem menos, de uma obra comprometida, talvez muito grande; mas é possível vendê-la através de uma série de livros de bolso.

Tal como está é impraticável. Falta nela um trabalho vigoroso de depuração. Toda pontuação, por exemplo, terá de sofrer uma completa revisão. Os períodos são muito cansativos e há alguns que chegam a ocupar uma página. Com um bom trabalho de revisão que os reduza a dois ou três linhas cada, com uma melhor utilização do ponto e do parágrafo, a obra teria muito a ganhar. Se o autor não concordar, o melhor será não editá-lo.


KAFKA

O PROCESSO

Não é mau essa livrinho; é policial, com momentos a Hitchcock: por exemplo, o homicídio final, passagem de público certo.

Parece, no entanto, que o autor o escreveu sob censura. Que significam essas alusões obscuras, essa falta de nomes, de pessoas, de lugares? De que crime acusam o personagem, afinal? Se esses pontos puderem ser esclarecidos, tornando a história mais concreta, a ação se tornaria mais límpida e mais certo o suspense.

Esses escritores jovens acreditam fazer "poesia", pois dizem "um homem", em vez de dizer "o senhor tal, a tal hora, em tal lugar".

Em síntese: se é possível fazer essas modificações, bem; caso contrário, devolver os origInais.


JOYCE

FINNEGANS WAKE

Por favor, recomende à redação que tenha mais cuidado quando me envia os livros. Leio inglês e me mandam um livro escrito em sei lá que diabo da idioma. Em separado, estou devolvendo o volume.”
Umberto Eco