E até
aqui temos de confessar que o juízo daqueles que diminuem e mesmo reduzem a
menos de zero os louvores pomposos das vantagens que a razão nos teria trazido
no tocante à felicidade e ao contentamento da vida, não é de forma alguma
mal-humorado ou ingrato para com a vontade do governo do mundo, mas que na base
de juízos desta ordem está oculta a ideia de uma outra e mais digna intenção da
existência, à qual, e não à felicidade, a razão muito especialmente se destina,
e à qual por isso, como condição suprema, se deve subordinar em grandíssima
parte a intenção privada do homem.
Portanto, se a razão não é apta bastante
para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objectos e à
satisfação de todas as nossas necessidades (que ela mesma - a razão em parte
multiplica), visto que um instinto natural inato levaria com muito maior
certeza a este fim, e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade
prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade,
então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa
quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o
que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu
em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos.
Esta vontade
não será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem
supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade. E
neste caso é fácil de conciliar com a sabedoria da natureza o facto de
observarmos que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e
incondicional intenção, de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta vida, a
consecução da segunda, que é sempre condicionada, quer dizer, da felicidade, e
pode mesmo reduzi-la a menos de nada, sem que com isto a natureza falte à sua
finalidade, porque a razão, que reconhece o seu supremo destino prático na
fundação duma boa vontade, ao alcançar esta intenção é capaz duma só satisfação
conforme à sua própria índole, isto é a que pode achar ao atingir um fim que só
ela (a razão) determina, ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado
aos fins da inclinação.
Emmanuel Kant, in ' Fundamentação da Metafísica dos Costumes'
Emmanuel Kant, in ' Fundamentação da Metafísica dos Costumes'
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