A felicidade é o estado em que se encontra
no mundo um ser racional para quem, em toda a sua existência, tudo decorre
conforme o seu desejo e a sua vontade; pressupõe, por consequência, o acordo da
natureza com todo o conjunto dos fins deste ser, e simultaneamente com o
fundamento essencial de determinação da sua vontade. Ora a lei moral, como lei
da liberdade, obriga por meio de fundamentos de determinação, que devem ser
inteiramente independentes da natureza e do acordo dela com a nossa faculdade
de desejar (como motor). Porém, o ser agente racional que actua no mundo não é
simultaneamente causa do mundo e da própria natureza. Assim, pois, na lei moral
não há o menor fundamento para uma conexão necessária entre a moralidade e a
felicidade, com ela proporcionada, num ser que, fazendo parte do mundo, dele
depende; este ser, precisamente por isso, não pode ser voluntariamente a causa
desta natureza nem, no que à felicidade respeita, fazer com que, pelas suas
próprias forças, coincida perfeitamente com os seus próprios princípios
práticos.
E, todavia, no problema prático que a razão
pura nos prescreve, isto é, na prossecução do soberano bem, tal acordo é
postulado como necessário: devemos procurar realizar o soberano bem, que, por
consequência, tem de ser possível. Por conseguinte, postular também a
existência de uma causa de toda a natureza, distinta da própria natureza que
encerra o fundamento de tal conexão, isto é, a exacta harmonia da felicidade e
da moralidade. Mas esta causa suprema deve conter o fundamento do acordo da
natureza, não só com uma lei da vontade dos seres racionais, mas com a
representação dessa lei, na medida em que eles fazem dela o motivo supremo da
sua vontade, e, por consequência, não só apenas com a forma dos costumes, mas
com a própria moralidade como fundamento determinante, isto é, com a intenção
moral.
O soberano bem não é, portanto, possível no mundo, a não ser que se admita uma natureza suprema dotada de causalidade conforme a intenção moral. Ora um ser capaz de agir segundo a representação de certas leis é uma inteligência (ser racional) e a causalidade de tal ser, segundo essa representação das leis, é uma vontade. Portanto, a causa suprema da natureza, como condição do soberano bem, é um ser que, por razão e vontade, é a causa, por conseguinte, o autor da natureza, isto é, Deus.
Emmanuel Kant, in 'Crítica da Razão Prática'
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