Passagem das Horas, de Fernando Pessoa, por Marco Nanini


Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo.
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento, difuso, profuso, completo e longínquo.

Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs.
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.

Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes.
Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida...

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo.
Transbordei, não fiz senão extravasar-me.
Despi-me, entreguei-me
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas.
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos postos-de-parte, todos os como que esquecidos.
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te.
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!

Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver.
Ah Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta.
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
Os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...

Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fizesses.
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco.

(Trecho da Passagem das Horas, de Fernando Pessoa “Álvaro de Campos”).

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