Não Entres tão Depressa Nessa Noite Escura

“O meu pai nunca me deixou entrar aqui. Devia sentar-se na cadeira de baloiço e olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portão, a rua, eu pequena a brincar às fadas com a minha irmã no rebordo do lago. Aos domingos abria a gaveta da cómoda, remexia papéis até escutarmos o tilintar da argola, subia as escadas do sótão a procurar a chave no meio das outras chaves
(tal como hoje, agora que ninguém me proíbe, abri a gaveta, remexi papéis até escutar o tilintar da argola e subi as escadas a procurar a chave no meio das outras chaves)
e ficava horas seguidas na cadeira de baloiço
(entendo neste momento que era a cadeira de baloiço pelo ruído das molas)
a olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portão, a rua, eu a brincar às fadas com a minha irmã no rebordo do lago
não, não acredito que se interessasse pela rua ou por nós, pela rua não se interessava nunca e quanto a nós o mais que nos oferecia era um aborrecimento mudo, a minha mãe mostrava-lhe os boletins do colégio e ele recusava-os com as costas da mão, fazíamos-lhe perguntas e continuava a mastigar, mudavam-nos o penteado e não reparava sequer, uma tarde, durante a lição de piano
a professora voltava a página da música (...)”
Lobo Antunes

Nenhum comentário: