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A Vantagem do Saber

Não existe ocupação tão agradável como o saber; o saber é o meio de nos dar a conhecer, ainda neste mundo, o infinito da matéria, a imensa grandeza da Natureza, os céus, as terras e os mares. O saber ensinou-nos a piedade, a moderação, a grandeza do coração; tira-nos as nossas almas das trevas e mostra-nos todas as coisas, o alto e o baixo, o primeiro, o último e tudo aquilo que se encontra no meio; o saber dá-nos os meios de viver bem e felizmente; ensina-nos a passar as nossas vidas sem descontentamento e sem vexames.
Marcus Cícero, in 'Disputas Tusculanas'

Censura Amiga

A amizade penetra nos menores detalhes da nossa vida, o que torna frequentes as ocasiões de ofensas e melindres: o sábio deve evitá-las, destruí-las ou suportá-las quando necessário for. A única ocasião em que não devemos deixar de ofender um amigo, é quando se trata de lhe dizer a verdade e de lhe provar assim a nossa fidelidade. Porque não devemos deixar de sobreavisar os nossos amigos, ainda quando se trate de os repreender. E nós mesmos devemos levar isto em boa vontade, quando tais repreensões são ditadas pelo bem querer.

Todavia, sou forçado a confessá-lo, como disse o nosso Terêncio no seu Adriana: «A benevolência gera a amizade; a verdade, o ódio». Sem dúvida a verdade é molesta se produz o ódio, este veneno da amizade. Mas a magnanimidade é-o ainda mais, porque para a indulgência culpável, pelas faltas de um amigo, ela deixa-o precipitar-se nas suas ruínas. Mas a falta mais grave é a que despreza a verdade e se deixa conduzir ao mal pela adulação. Este ponto reclama toda a nossa vigilância e atenção. Afastemos o ácido das nossas advertências, a injúria dos nossos reproches; que a nossa complacência (sirvo-me voluntário da expressão de Terêncio) seja farta de urbanidade; mas longe da nossa baixa adulação, este auxiliar indigno de um amigo e mesmo de um homem livre. Lembremo-nos que se vive com um amigo diferentemente de como se vive com um tirano.

Quanto àquele cujos ouvidos se fecharam à verdade ao ponto de não entender mesmo a boca do amigo, é preciso desesperar da sua salvação. Conhece-se a frase de Catão que, entre outras, ficou proverbial: «A amargura dos nossos inimigos, serve-nos bem mais que a doçura dos nossos amigos: aqueles dizem-nos quase sempre a verdade; estes, jamais». O que lia de desarrazoado é que os amigos que se advertem não se encolerizem do que deve causar-lhes pena, e o façam ao contrário do que deve não lhes causar henhuma. Em lugar de se encolerizar de haver mal agido, eles o são de ser repreendidos. Enquanto que, ao contrário, eles deveriam afligir-se da falta e alegrar-se da censura.
Marcus Cícero, in 'Diálogo sobre a Amizade'

O Interesse na Amizade

Aqueles que almejam somente o interesse na amizade, afastam dela o seu mais doce vínculo. O que nos agrada não é a utilidade oferecida pelo nosso amigo, mas sim o carinho desse amigo; e tudo o que nos for oferecido por ele ser-nos-á agradável, contanto que transpareça a dedicação. Tão longe está que seja a indigência que cultiva as amizades que justamente aqueles que, pelas suas riquezas, pelo seu crédito e sobretudo pelas suas virtudes, a mais segura das garantias, têm menos necessidade dos outros, — são os mais generosos e benfeitores. Não sei se será bom que os nossos amigos não necessitem de nós. Como poderia mostrar meu zelo por Cipião, se ele não procurasse os meus conselhos e os meus serviços, seja na paz, ou na guerra? A nossa amizade não nasceu pois, da utilidade, mas a utilidade a seguiu.
Marcus Cícero, in 'Diálogo sobre a Amizade

O Ridículo do Adulador e do seu Alvo

Um lisonjeador que não se procura esconder, só engana os tolos. É preciso que se desconfie dos que, mais espertos, se escondem aos olhares para mais secretamente se insinuarem no vosso espírito.

Nem sempre é fácil reconhecê-lo; pois muitas vezes ele contradiz-se para melhor aprovar, e para mais seguramente lisonjeá-la ele combate a vossa opinião, até por fim entregar as armas e confessar-se vencido, deixando ao antagonista a honra de um vão triunfo. Que mais vergonhoso existe que o ser assim enganado?

Guardemo-nos de que digam de nós como no «Epicleros»: «Hoje ludibriastes brilhantemente todos esses velhotes idiotas de comédia». Pois, até nas peças de teatro, os velhotes crédulos e imprevidentes fazem sempre um papel muito ridículo.
Marcus Cícero, in 'Diálogo sobre a Amizade'

Uma Alma Grande e Corajosa

Um espírito corajoso e grande é reconhecido principalmente devido a duas características: uma consiste no desprezo pelas coisas exteriores, na convicção de que o homem, independentemente do que é belo e conveniente, não deve admirar, decidir ou escolher coisa alguma nem deixar-se abater por homem algum, por qualquer questão espiritual ou simplesmente pela má fortuna. A outra consiste no facto - especialmente quando o espírito é disciplinado na maneira acima referida - de se dever realizar feitos, não só grandes e seguramente, bastante úteis, mas ainda em grande número, árduos e cheios de trabalhos e perigos, tanto para a vida como para as muitas coisas que à vida interessam.

Todo o esplendor, toda a dimensão (devo acrescentar ainda a utilidade), pertencem à segunda destas duas características; porém, a causa e o princípio eficiente, que os tornam homens grandes, à primeira.

Naquela está, com efeito, aquilo que torna os espíritos excelentes e desdenhosos das coisas humanas. Na verdade, pode isto ser reconhecido por duas condições: em primeiro lugar, se estimares alguma coisa como sendo boa unicamente porque é honesta, em segundo lugar, se te encontrares livre de toda a perturbação de espírito. Consequentemente, o facto de se ter em pouca conta aquelas coisas humanas e de se desprezar, com uma atitude de espírito firme e sólida, essas mesmas coisas, que a muitos parecem ilustres e exímias, deve constituir apanágio de uma alma grande e corajosa. Suportar aquilo que parece acerbo, que de muitas e variadas maneiras aflige a vida e a sorte dos homens (de modo por assim dizer a não renunciares à ordem natural e à dignidade do sábio), é próprio de um espírito robusto e de grande constância.
Marcus Cícero, in 'Dos Deveres'

Os Limites da Amizade

Determinemos, agora, quais são os limites e, por assim dizer, os termos da amizade. Encontro aqui três opiniões diferentes, das quais não aprovo nenhuma: a primeira deseja que sejamos para os nossos amigos, assim como somos para nós mesmos; a segunda, que a nossa afeição por eles seja tal e qual à que eles têm por nós; a terceira, que estimemos os nossos amigos, assim como eles se estimam a si mesmos. Não posso concordar com nenhuma destas três máximas. Porque a primeira, que cada um tenha para com o seu amigo a mesma afeição e vontade que tem para si, é falsa. De facto, quantas coisas fazemos pelos nossos amigos, que jamais faríamos para nós! Rogar, suplicar a um homem que se despreza, tratar a outro com aspereza, persegui-lo com violência; coisas que em causa própria não seriam muito decentes, nos negócios dos amigos tornam-se muito honrosas. Quantas vezes um homem de bem abandona a defesa dos seus interesses e os sacrifica, em seu próprio detrimento, para servir os de seu amigo!

A segunda opinião é a que define a amizade por uma correspondência igual em amor e bons serviços. É fazer da amizade uma ideia bem limitada e mesquinha, sujeitá-la, assim, a um balanço entre a despesa e a receita. Parece-me que a verdadeira amizade é mais rica e mais generosa; não calcula com exactidão com medo de oferecer mais do que recebeu. Não se deve temer na amizade que se vá dar demais ou que se vá perder alguma coisa.

A terceira máxima é a mais perniciosa de todas: quer que se estime ao amigo tanto quanto ele se estima a si mesmo. Mas há bom número de pessoas, cuja alma tímida e desalentada não ousa aspirar a uma melhor sorte. Serão, então, os amigos obrigados a pensar como eles? Não deverão, ao contrário, esforçarem-se por encorajá-los, sugerindo esperanças e doces pensamentos? É necessário, portanto, prescrever outros limites para a amizade.

(...) Eis aqui os limites nos quais creio poder encerrar a amizade. Que os costumes dos amigos sejam sempre puros, que uma inteira comunhão de bens, de pensamentos, de vontade, exista entre eles. E mesmo se, por infelicidade, um deles necessita de auxílio do outro, em alguma empresa de justiça duvidosa, mas de onde dependa a sua vida ou a sua honra, pode-se, neste caso, desviar um pouco o caminho certo, contanto que daí não resulte a desonra. A amizade, com efeito, condescende até um certo ponto.
Marcus Cícero, in 'Diálogo sobre a Amizade'

A Amizade como Auxiliar da Virtude

A maioria dos homens, na sua injustiça, para não dizer na sua imprudência, quer possuir amigos tais como eles próprios não seriam. Exigem o que não têm. O que é justo é que, primeiro, sejamos homens de bem e em seguida procuremos o que nos pareça sê-lo. Só entre homens virtuosos se pode estabelecer esta conveniência em amizade, sobre a qual insisto há muito tempo. Unidos pela benevolência, guiar-se-ão nas paixões a que se escravizam os outros homens. Amarão a justiça e a equidade. Estarão sempre prontos a tudo empreender uns pelos outros, e não se exigirão reciprocamente nada que não seja honesto e legítimo. Enfim, terão uns para os outros, não somente deferências e ternuras, mas, também, respeito. Eliminar o respeito da amizade é podar-lhe o seu mais belo ornamento.

É pois erro funesto crer que a amizade abre via livre às paixões e a todos os géneros de desordens. A natureza deu-nos a amizade, não como cumplice do vício, mas como auxiliar da virtude.

A fim de que a virtude, que, sozinha, não poderia chegar ao ápice, pudesse atingi-lo com o auxílio e o apoio de tal companhia. Aqueles para quem esta aliança existe, existiu ou existirá, deverão vê-la como a melhor e a mais feliz que se possa fazer para atingir o soberano bem.

É, digo, numa tal sociedade que se encontram todos os bens desejáveis, a honestidade, a glória, a tranquilidade e a alegria da alma, todos os bens, em uma palavra, que tornam a vida feliz, e sem a qual ela não poderia sê-lo. Se quisermos esta felicidade suprema, apliquemo-nos à virtude, sem a qual não poderíamos adquirir nem a amizade, nem um outro objeto dos nossos desejos. Os que a negligenciam, e que todavia imaginam ter amigos, reconhecerão afinal o seu erro, quando nas horas adversas forem forçados a experimentá-los.

Assim, não será demais insistir, é preciso conhecer antes de amar e não amar antes de conhecer. A negligência, funesta em tantas circunstâncias, é-o sobretudo na escolha e no comércio dos amigos. As reflexões vêm sempre mui tardiamente e, como diz o antigo provérbio, o que está feito, feito está. Ligue-se de qualquer maneira, seja por um comércio diário, seja mesmo por serviços, e depois, repentinamente, à menor ofensa, a amizade quebra-se a meio do caminho.
Marcus Cícero, in 'Diálogo sobre a Amizade'

A Amizade é Indispensável ao Nosso Ser

A amizade é a unica coisa cuja utilidade é unanimemente reconhecida. A própria virtude tem muitos detratores, que a acusam de ostentação e charlatanismo. Muitos desprezam as riquezas e, contentes de pouco, agradam-se da mediocridade. As honras, à procura da qual se matam tanto as pessoas, quantos outros as desdenham até olhá-las como o que há de mais fútil e de mais frívolo? E, assim, quanto ao mais! O que a uns parece admirável, ao juízo doutros nada é. Mas quanto à amizade, toda a gente está de acordo: os que se ocupam dos negócios públicos, os que se apaixonaram pelo estudo e pelas indagações sapientes, e os que, longe do bulício, limitam os seus cuidados aos seus interesses privados: todos enfim, aqueles mesmos que se entregaram todos inteiros aos prazeres, declaram que a vida nada é sem a amizade, por pouco que queiram reservar a sua para algum sentimento honorável.

Ela se insinua, com efeito, não sei como, no coração de todos os homens e não se admite que, sem ela, possa passar nenhuma condição da vida. Bem mais, se é um homem de natureza selvagem, muito feroz para odiar seus semelhantes e fugir do seu contacto, como fazia, diz-se, não sei mais que Timon de Atenas. É preciso ainda que este homem procure um confidente no seio do qual possa verter o seu veneno e o seu ódio. A necessidade da amizade será ainda mais evidente, se ele pudesse admitir que um Deus nos tirasse do seio da sociedade para nos colocar numa solidão profunda, onde, fornecendo-nos em abundância tudo o que a natureza nos pode propinar, nos subtraísse ao mesmo passo a esperança e os meios de ver jamais qualquer face humana.

Qual é a alma de ferro que suportaria uma tal existência e a quem a solidão não tornaria insípidos todos os gozos? Assim tenho por verdadeiras as palavras de Arquitas de Taranto, que entendi recordar a velhos que as ouviram eles próprios de seus pais: «se alguem subir ao céu, e de lá contemplar a beleza do universo e dos astros, todas essas maravilhas deixá-lo-ão indiferente, enquanto que o embasbacarão de surpresa se tiver de contá-las a alguém». Assim, a natureza do homem se recusa à solidão, e parece sempre procurar um apoio: e não o há mais doce que o coração de um terno amigo.
Marcus Cícero, in 'Diálogo sobre a Amizade'